Tribunal Especial Misto

PRESIDENTE:

Exmo. Sr. Desembargador Henrique Carlos de Andrade Figueira

MEMBROS:

Exmo. Sr. Desembargador José Carlos Maldonado de Carvalho

Exmo. Sr. Desembargador Fernando Foch de Lemos Arigony da Silva

Exma. Sra. Desembargadora Teresa de Andrade Castro Neves

Exma. Sra. Desembargadora Inês da Trindade Chaves de Melo

Exma. Sra. Desembargadora Maria da Glória Oliveira Bandeira de Mello

Exmo. Sr. Deputado Estadual Alexandre Freitas

Exmo. Sr. Deputado Estadual Chico Machado

Exmo. Sr. Deputado Estadual Waldeck Carneiro (Relator)

Exma. Sra. Deputada Estadual Dani Monteiro

Exmo. Sr. Deputado Estadual Carlos Macedo 

 

 

 

 

ACÓRDÃO

PROCESSO N° 2020-0667131

 

 

 

 

RELATOR: DEPUTADO WALDECK CARNEIRO

 

PROCESSO N.º 2020/0667131

DENUNCIANTE(S): EXMO. SR. DEPUTADO ESTADUAL LUIZ PAULO CORREA DA ROCHA E EXMA. SRA. DEPUTADA ESTADUAL LUCIA HELENA PINTO DE BARROS

DENUNCIADO: EXMO. SR. GOVERNADOR WILSON JOSÉ WITZEL

RELATOR: EXMO. SR. DEPUTADO ESTADUAL WALDECK CARNEIRO

 

EMENTA: Crime de Responsabilidade. Denúncia contra o Governador do Estado do Rio de Janeiro. Incidência da Lei Federal n° 1.079/1950, segundo as balizas da Súmula Vinculante n° 46 e do julgamento de mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 378-DF, ambos do Supremo Tribunal Federal. Competência do Tribunal Especial Misto. Pandemia reconhecida pela Organização Mundial de Saúde, em 11 de março de 2020. Imputações de improbidade na administração e conduta incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo de Governador do Estado, em virtude da requalificação supostamente delituosa do Instituto Unir Saúde, bem como da alegada improbidade da avença com o Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde. Fatos sobejamente comprovados. Incidência, em ambos os eixos da Denúncia, do art. 9°, item 7, da Lei Federal n° 1.079/1950. Culpabilidade configurada. Circunstâncias e consequências dos crimes de responsabilidade que determinam a condenação, em ambos os eixos, à perda do cargo eletivo e à consequente inabilitação por cinco anos para o exercício de qualquer função pública, nos termos do caput do art. 78 do mesmo diploma.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de processo especial por crime de responsabilidade, em que são denunciantes o Excelentíssimo Senhor Deputado Luiz Paulo Correa da Rocha e a Excelentíssima Senhora Deputada Lucia Helena Pinto de Barros, acordam os Membros do Tribunal Especial Misto, em sessão presencial, sob a Presidência do Excelentíssimo Senhor Desembargador Henrique Carlos de Andrade Figueira, em conformidade com a ata de julgamento: por unanimidade de votos, acolher a pretensão acusatória, julgando procedente o pedido para condenar o réu à perda do cargo de Governador do Estado do Rio de Janeiro e à inabilitação para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de cinco anos, nos termos do artigo 4º, inciso v, do artigo 9º, item 7, e do artigo 78, todos da Lei Federal nº 1.079, de 10 de abril de 1950.

 

RELATÓRIO

 

O Relatório consta no Index 2082805.​

 

VOTO

 

  1. Preliminares

Em suas Alegações Finais, apresentadas no dia 27 de abril do corrente, a Defesa arguiu preliminarmente: (a) a inépcia da Denúncia e a ausência do libelo acusatório; (b) a ofensa à Súmula Vinculante n° 14, do Supremo Tribunal Federal, que trata da imprescindibilidade de acesso a todas as provas relevantes ao deslinde do processo; (c) o cerceamento de defesa pelo indeferimento do pedido de produção de provas periciais. 

No caso concreto, busca a combativa Defesa o reconhecimento das citadas preliminares arguidas, pedindo: a) no que tange à primeira preliminar, que “seja anulado o processo desde sua origem”; b) no que tange à segunda preliminar, que “seja anulada a oitiva do ex-Secretário e delator, Edmar Santos, bem como o interrogatório do Governador Wilson Witzel”; c) no que tange à terceira preliminar, que seja declarada a “nulidade do feito desde o início da instrução”. 

Primeira Preliminar  

Com relação à primeira preliminar arguida, qual seja, a inépcia da Denúncia e a ausência do libelo acusatório, o próprio legislador, ao editar a Lei Federal n° 1.079, de 10 de abril de 1950, consagrou, em seu artigo 59, a apresentação do libelo como uma “faculdade”, deixando cristalina a sua natureza discricionária. Vejamos:

“Art. 59. Decorridos esses prazos, com o libelo e a contrariedade ou sem eles, serão os autos remetidos, em original, ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, ou ao seu substituto legal, quando seja ele o denunciado, comunicando-se lhe o dia designado para o julgamento e convidando-o para presidir a sessão.” (grifos nossos)

Ademais, o rito procedimental aplicável ao processo de impeachment de governadores está insculpido nos artigos 74 a 79 da aludida Lei nº 1.079/50. Nessa sequência de dispositivos, porém, não se faz qualquer referência à obrigatoriedade de apresentação do libelo acusatório. Logo, a ausência de disciplinamento legal sobre a exigência de apresentação de libelo acusatório, no que tange ao processo de impeachment de governadores, configurou-se como escolha do legislador.

É nessa exata perspectiva que se insere o entendimento adotado pelo eminente Relator, Ministro Alexandre de Moraes, do egrégio Supremo Tribunal Federal, quando proferiu sua r. Decisão, dirimindo os mesmíssimos questionamentos da Defesa, nos autos da Reclamação Constitucional n° 46.835-RJ:

“(...) não havendo falar em lacuna a ser preenchida pela aplicação subsidiária do rito procedimental referente ao Presidente da República, motivo pelo qual sequer há falar em indevida aplicação da Lei Federal pelo órgão julgador reclamado”.

 

E prossegue o insigne Ministro, referindo-se ao caso concreto ora em apreço:

 “Seja como for, ainda que houvesse a possibilidade de apresentação de libelo acusatório ao procedimento referente aos governadores, não há que se falar em prejuízo no presente caso, a partir da perspectiva do exercício concreto da ampla defesa, garantia constitucional aos acusados de maneira geral.”

 

Por fim, importa acrescentar que o Réu, desde a apresentação de seu primeiro instrumento de defesa a este Tribunal Especial Misto, antes da decisão sobre a admissibilidade da Denúncia, buscou enfrentar o mérito da acusação em seus dois eixos estruturantes. Naquela peça defensiva, sobre o primeiro eixo da acusação relativo à requalificação da OSS Unir Saúde, assim se pronunciou a Defesa:

“Em outras palavras, a decisão proferida pelo governador que visava (...) garantir à população regular acesso ao serviço de saúde, em meio a uma pandemia nunca antes vista/vivida no último século, só tomou relevância e ares de irregularidade dada a suposta relação entre a Unir e o Sr. Mário Peixoto(...).”

 

Naquele mesmo instrumento de defesa, sobre o segundo eixo da acusação relativo à contratação da OSS IABAS, a Defesa se manifestou nos seguintes termos:

“Não obstante os fatos narrados na denúncia, não restou comprovado, sob nenhuma perspectiva, de que forma o governador poderia ter participado neste procedimento administrativo, que resultou na celebração do contrato nº 027/2020 entre o estado do Rio de Janeiro e o IABAS.”

 

Como se constata, desde a primeira etapa de processamento do Réu, quando ainda era apenas denunciado, a Defesa já demonstrava conhecer, com clareza, os eixos da denúncia, a ponto de enfrentá-los, diretamente, no mérito.

Diante do exposto, rejeito a primeira preliminar (III.1) relativa à inépcia da Denúncia e à ausência de libelo acusatório.    

Segunda Preliminar

Com relação à segunda preliminar arguida, qual seja, ofensa à Súmula Vinculante n° 14, do Supremo Tribunal Federal, que trata da imprescindibilidade de acesso a todas as provas relevantes ao deslinde do processo, a Defesa se refere à integralidade da colaboração premiada do Sr. Edmar José Alves dos Santos, que não teria sido disponibilizada a tempo, pelo Superior Tribunal de Justiça, para a sessão de oitiva da referida testemunha e de interrogatório do Réu. A propósito desse questionamento, cabe destacar os seguintes aspectos. Em primeiro lugar, todos os anexos da aludida colaboração premiada que se referem aos dois eixos estruturantes da Acusação já estavam disponíveis às partes durante a fase instrutória. Em segundo lugar, os anexos encaminhados pelo e. Ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, ao Tribunal Especial Misto, após a conclusão da fase de instrução do presente processo, além de não guardarem relação com os eixos da Acusação, já tinham sido disponibilizados à Defesa, desde 12 de março do corrente, como afirma o próprio Ministro, no Ofício n° 877/2021-CESP, datado de 13 de abril de 2021. Ora, a sessão de oitiva do Sr. Edmar Santos e de interrogatório do Réu ocorreu no dia 07 de abril de 2021, portanto, quase um mês depois que a Defesa teve acesso aos referidos anexos.

Diante do exposto, rejeito a segunda preliminar (III.2) relativa à imprescindibilidade de acesso a todas as provas relevantes ao deslinde do processo.

Terceira Preliminar

Por fim, com relação à terceira preliminar arguida, qual seja, cerceamento de defesa pelo indeferimento do pedido de produção de prova pericial, não tem procedência a sua arguição pelo Réu, tendo em vista que se trata de matéria pacificada em nossos colendos Tribunais, que consideram ser de competência do julgador, de ofício ou a requerimento das partes, determinar as provas necessárias à instrução processual, bem como indeferir aquelas que, a seu juízo, encerram caráter protelatório.

Sobre o tema, destacamos o voto do eminente Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, proferido nos autos do HC 131.158-RS, Primeira Turma, DJe 26.4.2016:

“(...) não há direito absoluto à produção de prova. Em casos complexos, há que confiar no prudente arbítrio do juiz da causa, mais próximo dos fatos, quanto à avaliação da pertinência e relevância das provas requeridas pelas partes”.(grifos nossos)

 

Na mesma linha, ensina o eminente jurista e Desembargador do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Guilherme de Souza Nucci[1]:

Sobre a vinculação do juiz ao laudo pericial, é natural que, pelo sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional adotado pelo Código, possa o magistrado decidir matéria que lhe é apresentada de acordo com sua convicção, analisando e avaliando a prova sem nenhum freio ou método previamente imposto pela lei.

(...) Por tal motivo, preceitua o art. 182 do Código de Processo Penal não estar o juiz adstrito ao laudo, podendo acolher totalmente as conclusões dos expertos ou apenas parcialmente, além do poder rejeitar integralmente laudo ou apenas parte dele. O conjunto probatório é o guia do magistrado e não unicamente o exame pericial. Ex.: é possível que o julgador despreze o laudo de exame do local, porque acreditou na versão oferecida por várias testemunhas ouvidas na instrução de que a posição original do corpo no momento crime, por exemplo, não era a retratada pelo laudo. Assim o juiz rejeitará o trabalho pericial e baseará sua decisão nos depoimentos coletados, que mais o convenceram da verdade real”. (grifos nossos)

 

Ademais, a preliminar arguida, além de ser objeto de Acórdão deste Tribunal Especial Misto, também foi examinada no Mandado de Segurança, autuado no egrégio Órgão Especial do colendo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sob o n° 0001341-27.2021.8.19.0000, e jurisdicionalmente sanada, nos termos da Decisão do eminente Relator, Desembargador Custódio de Barros Tostes. Se não, vejamos:

“Sucede, contudo, que, embora a interpretação a contrario sensu tenha sido bem operada, a conclusão esbarra no fato de que o Órgão Especial não é instância revisora do Tribunal Especial Misto, ao qual o artigo 78 da Lei 1.079/50 comete competência soberana para julgar o Governador de Estado por crimes de responsabilidade. Assim, não se defere o mandado de segurança ao sucedâneo recursal, na medida em que sequer existe órgão judicialmente revisor para o qual poderia ser dirigido.”

 

Além de invocar o argumento da inexistência de instância recursal para as decisões do Tribunal Especial Misto, o ilustre Desembargador acrescenta o límpido entendimento, na mesma linha da posição anteriormente citada do eminente Ministro Edson Fachin, de que cabe ao juiz discernir sobre o direito à instrução probatória:

“Afinal, como cediço, o acusado tem direito à prova, mas a gestão desta atividade, inclusive para indeferir diligências inúteis à formação de seu convencimento, fica a critério do juiz, destinatário final dos elementos produzidos.”

Diante do exposto, rejeito a terceira preliminar (III.3) relativa ao cerceamento de defesa pelo indeferimento de pedido de produção de prova pericial.

 

Decisão sobre as preliminares

Em face de toda a argumentação declinada até aqui, REJEITO TODAS AS PRELIMINARES ARGUIDAS PELA DEFESA em suas Alegações Finais.

 

2.  Aspectos contextuais e conceituais

Com a promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil, em 05 de outubro de 1988, o Brasil deu largo passo rumo à restauração do Estado Democrático de Direito, após 21 anos de arbítrio.

O preâmbulo da nossa Carta Magna é, por assim dizer, a expressão dos profundos anseios e das reais intenções que permeiam o texto constitucional. É nesse introito constitucional que, preliminarmente, os integrantes da Assembleia Nacional Constituinte deixam claro que ali estiveram reunidos para “instituir um Estado Democrático”.

Com efeito, ainda no preâmbulo da Constituição, texto de grande relevância e imensurável valor teleológico, fica demonstrada a importância do primado dos direitos para o tão almejado Estado Democrático. Vejamos:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (grifos nossos)

 

Mais adiante, é expressamente reiterada a vontade dos membros da Assembleia Nacional Constituinte, no parágrafo único, do artigo 1°, a saber:

Art. 1° (...)

Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (grifos nossos)

 

Percebe-se, portanto, que, desde o início, a Constituição Federal configura a República Federativa do Brasil não apenas como um “Estado Democrático”, mas também, nos termos do caput de seu artigo 1º, como um “Estado Democrático de Direito”. O corolário dessa submissão à forma jurídica é um Estado Constitucional no qual a noção de “democracia” não se esgota no direito ao voto, ou seja, não se limita à legitimação da vontade do povo no processo de eleição de seus representantes, embora este seja, é claro, um componente inextricável da experiência democrática.

Sobre esse tema, o jurista Paulo Brossard de Souza Pinto, de saudosa memória, ex-Ministro de Estado da Justiça e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal[2], ressalta:

"(...) sem eleição não há democracia, mas sem a responsabilidade efetiva dos eleitos a democracia não passará de forma disfarçada de autocracia. Autocracia eletiva e temporária, mas autocracia." (grifos nossos)

 

Logo, o representante eleito, segundo o ordenamento jurídico, é conceituado como agente público investido de mandato e de responsabilidades. Com efeito, a Lei Federal n° 8.429, de 02 de junho de 1992, em seu artigo 2º, define agente público como todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta ou indireta.

Nesse sentido, sublinha a eminente jurista Maria Sylvia Zanella Di Pietro[3]:

“(...) agente público é todo aquele que presta serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da administração indireta. Dividindo-o em quatro espécies: agentes políticos - que exercem cargos por mandato eletivo ou nomeação; servidores públicos - pessoas físicas que prestam serviços ao Estado; Militares - que são os agentes públicos das forças armadas; e particulares em colaboração com o Estado - que são aqueles que exercem funções sem vínculos empregatícios com a Administração. (...)” (grifos nossos)

Decerto, o agente público, no exercício de sua função, deve atuar com zelo, desprendimento, dedicação, conhecimento, sempre respeitando as normas infraconstitucionais e constitucionais, bem como pautando sua conduta, de forma permanente, na busca pelo bem comum do povo.

Importa destacar que, ao aceitar a investidura em uma função pública, o agente deve respeitar e observar, acima de tudo, os ditames legais, ou seja, praticar atos lastreados na legalidade. Mas também se requer que seus atos estejam igualmente fundamentados na moralidade e na probidade. A inobservância dos comandos legais ou a adoção de condutas imorais ou ímprobas poderão acarretar ao agente público a responsabilização por suas ações, sejam elas comissivas ou omissivas.

No caso em tela, o agente público, qual seja, o Governador afastado do Estado do Rio de Janeiro, Exmo. Senhor Wilson José Witzel, foi denunciado pela suposta prática de crime de responsabilidade, na forma prevista no artigo 74, tipificado conforme disposto no artigo 4°, inciso V, e no artigo 9°, item 7, todos da Lei Federal n° 1.079, de 10 de abril de 1950, pelo Exmo. Senhor Deputado Estadual Luiz Paulo Correa da Rocha (doravante, Deputado Luiz Paulo) e pela Exma. Senhora Deputada Estadual Lucia Helena Pinto de Barros (doravante, Deputada Lucinha).

A supracitada Lei prevê os crimes de responsabilidade praticados por agentes públicos, no presente caso, pelo Chefe do Poder Executivo estadual do Rio de Janeiro, e regula o respectivo processo de julgamento que pode levar à perda do cargo e à inabilitação, por até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da propositura de ações judiciais pelos órgãos competentes.

No Brasil, prevalece o modelo estadunidense de impeachment, acerca do qual as formulações de Alexis de Tocqueville[4], filósofo, político, jurista e escritor francês, restam atuais:

"(...)

Le but principal du jugement politique, aux États-Unis, est donc de retirer le pouvoir à celui qui en fait un mauvais usage, et d’empêcher que ce même citoyen n’en soit revêtu à l’avenir. C’est, comme on le voit, un acte administratif auquel on a donné la solennité d’un arrêt. (…)"

 

 Em tradução livre, pode-se afirmar que o insigne pensador francês sustentou que o objetivo principal do julgamento político é a retirada do poder de quem dele fez mau uso e impedir que nele seja reinvestido no futuro, por meio de um ato administrativo ao qual se dá a solenidade de uma sentença judicial.

A contrario sensu, importa destacar que a forma de Estado Monárquica se caracterizava justamente pela absoluta irresponsabilidade do Rei ou do Imperador. Essa irresponsabilidade era inclusive afirmada em sede de matéria constitucional, mais especificamente no artigo 99, da Constituição brasileira de 1824. Respeitada a grafia, vejamos:

"Art. 99 A Pessoa do Imperador é inviolável e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma." (grifos nossos)

É importante o destaque acerca da absoluta irresponsabilidade do monarca para demonstrar que, ao contrário do Estado Monárquico, em uma República, ninguém, absolutamente ninguém, está acima da Lei. Pouco importa se governados ou governantes, todos estão sujeitos à responsabilização.

Justamente nesse sentido, Paulo Maria de Lacerda[5] já considerava a responsabilização do Chefe do Poder Executivo, há mais de um século e sob a égide da nossa primeira Constituição republicana de 1891, como “uma conquista fundamental da democracia e, como tal, é elemento essencial da forma republicana democrática que a Constituição brasileira adotou." (grifos nossos)

É bem verdade que, no Brasil, o processo de impeachment, que tem natureza político-administrativa e pode culminar na destituição de determinadas autoridades, inabilitando-as para o exercício de funções públicas, é, nas palavras do eminente jurista e membro do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Roberto Barroso[6], “o processo mediante o qual se promove a apuração e o julgamento dos crimes de responsabilidade”, como pode ser o caso de delitos supostamente cometidos por governadores, que é exatamente o objeto do processo ora em exame.

Nesse sentido, também se manifestou o eminente Ministro Edson Fachin, no julgamento de mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 378-DF, pelo egrégio Plenário do colendo Supremo Tribunal Federal, cujo Acórdão foi publicado no Diário da Justiça Eletrônico, na data de 08 de março de 2016:

"(...)

Por essa razão, é no preceito fundamental da relação entre os poderes que se deve buscar a natureza jurídica do impeachment, definido como um modo de se exercer o controle republicano do Poder Executivo. A exigência de lei específica, de um lado, e as garantias processuais, de outro, permitem configurá-lo como modalidade limitada de controle, na medida em que, sendo a República um fim comum, ambos os poderes devem a ele dirigir-se. O limite, por sua vez, decorre do fato de que não se pode, sob o pretexto de controle, desnaturar a separação de poderes.

Do princípio republicano parece decorrer, pois, a natureza político-administrativa do instituto, cuja tutela coincide, embora com regimes diferenciados, com a que se sujeitam os demais agentes públicos e aqueles a eles equiparados relativamente à probidade da Administração. (...)" (grifos nossos)

 

Na mesma esteira, em sua obra aqui já mencionada, Paulo Brossard de Souza Pinto (1992, p. 75) sublinha: "o impeachment tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e julgado segundo critérios políticos – julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios jurídicos."

Ainda sobre o mesmo tema, também se pronunciou o saudoso Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, mais precisamente sobre a natureza jurídica do processo por crime de responsabilidade, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 378-DF:

"Eu não diria que se trata de um julgamento político, mas de um modo diferente de interpretar a Lei. Obviamente que a interpretação da Lei por um parlamentar é diferente do olhar que um juiz lança a determinadas circunstâncias. Assim também ocorre nos processos de competência do Júri." (grifos nossos)

Merece destaque o fato de que o processo de impeachment tem motivações políticas, desdobramentos políticos, provocações políticas e julgamentos políticos. Porém, isso não quer dizer que seja um processo arbitrário: pelo contrário!

O processo de impeachment deve ser considerado como importante instrumento garantidor da democracia. É através dele que se permite a responsabilização de agentes públicos, cabendo seu julgamento, ou seja, o poder de decisão, àqueles(as) em quem o povo brasileiro confiou seu voto e, portanto, que foram eleitos(as) como seus representantes.

Isso não quer dizer, contudo, que "critérios jurídicos" não devam ser observados e respeitados. Como já realçado por Paulo Brossard de Souza Pinto, esses mesmos critérios nos obrigam inclusive a revisitar a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), recepcionada em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto Federal n° 678, de 06 de novembro de 1992, o qual prevê, em seu artigo 8°, as garantias judiciais aplicáveis aos processos sancionatórios promovidos pelo Estado, quais sejam:

“ARTIGO 8º – GARANTIAS JUDICIAIS

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presente no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.

g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e

h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá se submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.” (grifos nossos)

 

É imperioso frisar que, com exceção das alíneas “a” e “e”, inaplicáveis ao caso ora examinado, no curso do presente processo foram cumpridos todos os demais requisitos apontados. Se não, vejamos:

Conclui-se, portanto, que, no âmbito deste processo, não é cabível falar em afronta ao princípio constitucional do contraditório, que, nas palavras do jurista e professor Vicente Greco Filho[7], se efetiva assegurando-se os seguintes elementos: a) o conhecimento da demanda por meio de ato formal de citação; b) a oportunidade, em prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial; c) a oportunidade de produzir prova e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário; d) a oportunidade de estar presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que desejar; e) a oportunidade de recorrer da decisão desfavorável. (grifos nossos)

Na mesma linha, também não cabem questionamentos ou ilações acerca do princípio constitucional da ampla defesa, que assegura ao Réu a liberdade inerente ao indivíduo de, em defesa de seus interesses, alegar fatos e propor provas, seguindo, para tanto, duas regras básicas: a) a possibilidade de se defender; b) a possibilidade de recorrer.

Ainda no bojo dos ensinamentos do jurista e professor Vicente Greco Filho[8], “consideram-se meios inerentes à ampla defesa: a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133); e) poder recorrer da decisão desfavorável.”

Por fim, pontifica o sociólogo e filósofo polonês, professor emérito de sociologia das Universidades de Leeds e de Varsóvia, Zygmunt Bauman[9]: “no fundo de todas as crises da atualidade está a crise dos instrumentos de ação efetiva.

 É exatamente esta ação efetiva que precisa ser resgatada. Afinal, neste momento, todos os holofotes estão voltados para este inédito Tribunal Especial Misto do Estado do Rio de Janeiro (TEM), em razão do processamento e do julgamento do Chefe do Poder Executivo estadual, vale dizer, mais uma grave e lamentável página na história recente do Estado do Rio de Janeiro.

Importa relembrar que, pouco mais de um ano à frente do Poder Executivo fluminense, o Réu viu o mundo inteiro receber, com perplexidade, a notícia da inauguração do hospital Huoshensha, na cidade de Whuan, capital da província de Hubei, na China. A citada cidade viria a ser o epicentro, entre os meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020, de uma pneumonia, até então de causa desconhecida, que havia se alastrado rapidamente e foi posteriormente nomeada “COVID-19”.

Não bastasse todo o espanto face à impressionante velocidade com que a doença se espalhou, a notícia teve ainda mais repercussão com a divulgação do tamanho do hospital, preparado para disponibilizar 1.000 (mil) leitos e dotado de uma equipe médica de cerca de 1.400 (mil e quatrocentos) profissionais de saúde. Nesse mesmo momento, a mídia mundial começa a divulgar as impressionantes imagens da logística empregada para erguer aquela espantosa estrutura. Eram centenas de caminhões, tratores e retroescavadeiras, somados a centenas de operários, que trabalharam na empreitada por apenas 10 (dez) dias, tempo recorde e improvável para realizar feito tão arrojado.

Além do hospital Huoshensh, o governo chinês previa ainda entregar, dois dias depois, outro hospital, o Leishenshan, com capacidade de atendimento de 1.500 (mil e quinhentos) leitos. Toda essa infraestrutura, infelizmente, não foi capaz de conter o avanço da doença no planeta, que veio a ser reconhecida como Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), pela Organização Mundial da Saúde (OMS)[10], em 30 de janeiro de 2020.

Ainda em janeiro de 2020, a COVID-19 já havia rompido as fronteiras chinesas e países como Japão, Coréia do Sul e Tailândia já registravam os primeiros casos. A partir desse momento, começaram a ser divulgadas por autoridades sanitárias internacionais as primeiras medidas de contenção do coronavírus, como o fechamento das fronteiras dos países vizinhos à China, o controle e a quarentena de viajantes.

No Brasil, passado o carnaval, na quarta-feira subsequente, dia 25 de fevereiro de 2020, foi registrado o primeiro caso suspeito, no dia seguinte confirmado, de paciente infectado pelo novo coronavírus.[11] Tratava-se de um homem de 61 (sessenta e um) anos, que deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, na cidade de São Paulo, com histórico de viagem pela Itália.

Em 05 de março do mesmo ano, foi anunciado, pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), o primeiro caso confirmado, no estado do Rio de Janeiro, de paciente infectado pelo novo coronavírus.[12] A assustadora notícia foi dada pelo então Secretário de Estado de Saúde, Sr. Edmar Santos. Desta feita, tratava-se de uma mulher de 27 (vinte e sete) anos, moradora do município de Barra Mansa, no sul fluminense, que viajara pela Europa entre os dias 09 e 23 de fevereiro de 2020, data em que retornou ao Brasil.

Na oportunidade, o então Secretário de Estado de Saúde procurou tranquilizar a população fluminense, dizendo se tratar de “caso importado” por pessoa que estivera em área de transmissão e acrescentando que a paciente apresentava sintomas brandos da doença, “como são 85% dos casos”. Esclareceu, ainda, que a enferma estava em isolamento domiciliar, onde permaneceria pelo prazo de 20 dias, contado da data em que os sintomas se manifestaram. Disse ainda que não existiam sinais de que o vírus estivesse circulando livremente pelo Rio de Janeiro: “(...) a população pode seguir tranquila. Não há nenhum motivo para pânico.”

No dia 06 de março de 2020, dia seguinte às declarações do Sr. Edmar Santos, o estado do Rio de Janeiro registrou o segundo caso confirmado de paciente infectado pelo novo coronavírus, sendo o primeiro caso na cidade do Rio de Janeiro. Tratava-se de uma mulher de 52 (cinquenta e dois) anos de idade, também com histórico de viagem pela Itália.

Sobre esse novo caso, em nota, o Sr. Edmar Santos afirmou novamente que se tratava de dois casos importados e completou: “permanecemos no nível zero do nosso plano de contingência e não há razões para pânico. Os cuidados devem permanecer os mesmos que tomamos para gripe.”

Na manhã da quinta-feira, dia 19 de março de 2020, foi confirmada a primeira morte em decorrência do novo coronavírus, no estado do Rio de Janeiro, que ocorreu na cidade de Miguel Pereira.[13] A vítima era uma mulher de 63 (sessenta e três) anos, que tinha comorbidades (diabetes e hipertensão) e trabalhava como empregada doméstica na residência de uma pessoa que testara positivo para a doença.

Posteriormente, foi publicado o Decreto Estadual n° 46.984, de 20 de março de 2020, reconhecendo o estado de calamidade pública no estado do Rio de Janeiro em decorrência da pandemia do novo coronavírus, ato executivo logo depois corroborado pela Lei Estadual nº 8.794, de 17 de abril de 2020.  

A partir daí, é possível afirmar que, diante da pandemia do novo coronavírus, tragédia sanitária e humanitária, de proporções e características inéditas no Rio de Janeiro, no Brasil e no planeta, todos os holofotes se voltaram, como era de se supor, para a gestão pública da saúde. Na esfera estadual, descortinou-se, então, um cenário que evidenciava fragilidade na gestão da crise, revelando-se nítido despreparo da administração estadual para adotar, em caráter efetivo, as necessárias ações emergenciais de gestão para o enfrentamento à COVID-19, embora o Réu, como governador, tivesse anunciado, de início, medidas firmes e, em geral, sintonizadas com as recomendações das autoridades sanitárias e científicas, nacionais e internacionais.

Contudo, após decretado o estado de calamidade pública em virtude da pandemia, com a suspensão de várias atividades presenciais, em função da adoção das medidas de isolamento ou distanciamento social, imprescindíveis à contenção da curva epidemiológica, começaram a ser anunciados os investimentos emergenciais para aparelhamento de hospitais e para aquisição dos insumos necessários ao atendimento de pacientes que apresentassem sintomas ou tivessem a confirmação da infecção pelo novo coronavírus. Naquele mesmo período, em 30 de março de 2020, foi anunciada também pelo Réu, na qualidade de governador, a montagem de 8 (oito) hospitais de campanha no estado (incluindo uma unidade financiada e gerida pela iniciativa privada, com pacientes encaminhados pela Secretaria de Estado de Saúde), de modo a possibilitar o aumento de 1.800 (mil e oitocentos) leitos, aqui incluídos os leitos intensivos, para serem disponibilizados à população fluminense, com previsão de inauguração até 30 de abril de 2020: Maracanã, Jacarepaguá, Leblon (privado), Duque de Caxias, São Gonçalo, Campos, Casemiro de Abreu e Gericinó. No início de abril daquele ano, o governo estadual chegou a anunciar uma nona unidade em Nova Friburgo.  

Dos hospitais de campanha prometidos, além da unidade custeada pelo setor privado (Leblon), apenas dois foram entregues pelo governo estadual (Maracanã e São Gonçalo), mesmo assim, com muito atraso na montagem e com a quantidade de leitos reduzida, muito aquém da propagada, além das crescentes suspeitas de irregularidade e dos fortes indícios de fraude nos processos de contratação da organização social responsável pelo serviço (ALERJ. Comissão Especial COVID-19. Relatório Final, 2020).

A Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) começaram então a investigar desvio de recursos públicos da área de saúde no Estado do Rio de Janeiro e, diante de indícios da participação do Governador Wilson Witzel, o MPF encaminhou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pedido de Medida Cautelar de Busca e Apreensão Criminal, que deu origem ao Inquérito nº 1338-DF, sob a relatoria do eminente Ministro Benedito Gonçalves. Posteriormente, o MPF encaminhou o pedido de Busca e Apreensão Criminal n° 27-DF, com vistas à apuração de possíveis irregularidades na execução do programa estadual de enfrentamento à COVID-19 no estado do Rio de Janeiro, o que desencadeou a chamada “Operação Placebo”.

3. Breve resumo da Denúncia e sua admissibilidade pelo TEM

Com base nos fatos acima, restituídos em apertado resumo, o Deputado Estadual Luiz Paulo e a Deputada Estadual Lucinha protocolaram, em 27 de maio de 2020, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), denúncia contra o governador do Estado do Rio de Janeiro, Senhor Wilson José Witzel, imputando-lhe a prática de crimes de responsabilidade, caracterizados na forma do disposto no art. 4°, inciso V, e no art. 9°, item 7, todos da Lei Federal n° 1.079, de 10 de abril de 1950, em dois eixos de acusação: a) requalificação da Organização Social de Saúde Instituto Unir Saúde (OSS Unir Saúde); b) contratação da Organização Social de Saúde Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (OSS IABAS).

Em relação ao primeiro eixo, qual seja, a requalificação da OSS Unir Saúde, aduz a Denúncia que, no exercício de 2019, foi instaurado o processo administrativo n° E-08/001/1170/2019, com vistas à apuração de indícios de irregularidades cometidas pela OSS Unir Saúde na execução dos contratos de gestão das unidades estaduais de saúde sob sua responsabilidade.

Após assegurados o contraditório e a ampla defesa nos autos do referido processo administrativo, teriam restado comprovados os indícios de irregularidades na execução dos contratos de gestão sob a responsabilidade da OSS Unir Saúde, razão que motivou a aplicação da sanção de desqualificação da referida entidade, o que se deu com a edição da Resolução Conjunta SES/SECCG nº 664/2019, de 16 de outubro de 2019, ato conjunto firmado pelo Secretário de Estado de Saúde e pelo Secretário de Estado da Casa Civil e Governança.

A citada Resolução tinha amparo na Lei Estadual n° 6.043, de 19 de setembro de 2011, regulamentada pelo Decreto nº 43.261, de 27 de outubro de 2011, que disciplina a qualificação de entidades sem fins lucrativos como organizações sociais, na área de saúde, bem como dispõe sobre a celebração de contratos de gestão entre o Poder Executivo e as entidades qualificadas na forma da aludida Lei. Com efeito, neste diploma legal, está claramente prevista, em seu art. 38, a possibilidade de o Poder Executivo desqualificar a entidade como Organização Social, o que acarreta a rescisão do contrato de gestão, assim como a reversão dos bens permitidos e dos valores entregues à entidade, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Ocorre que, em 23 de março do corrente, o Réu, de acordo com os denunciantes, “sem fundamento idôneo” e fazendo uso de poder discricionário, fundado unicamente nos elementos subjetivos da oportunidade e da conveniência da Administração Pública, deu provimento ao recurso administrativo interposto pela OSS Unir Saúde, inconformada com sua desqualificação.

Com isso, a Resolução Conjunta SES/SECCG nº 664/2019 foi revogada e, consequentemente, restaurou-se a qualificação da OSS Unir Saúde, que voltou a ser considerada apta a celebrar contratos de gestão com o Poder Executivo para administrar unidades estaduais de saúde. O ato de requalificação da referida entidade como Organização Social foi devidamente publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (DOERJ), em 24 de março de 2020.

O provimento do recurso administrativo interposto pela OSS Unir Saúde, segundo a Denúncia, “sem fundamento legal”, amparado apenas em elementos subjetivos, quais sejam, a oportunidade e a conveniência da Administração Pública, teve como principal justificativa o reconhecimento da situação de emergência no estado do Rio de Janeiro, na área de saúde pública, nos termos do Decreto nº 46.973, de 16 de março de 2020,  posteriormente convalidado pela Lei n° 8.794, de 17 de abril do 2020, que reconhece o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus.

Em relação ao segundo eixo da acusação, qual seja, a contratação da OSS IABAS, afirmam os denunciantes que o Ministério Público Federal teria identificado robustos indícios de participação do Réu, de forma ativa, na prática de atos ilícitos referentes à mencionada contratação. Acrescentam os denunciantes que elementos comprobatórios teriam sido encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, o que ensejou a deflagração do Inquérito nº 1.338/DF e, em consequência, a adoção de medida cautelar baseada no pedido de Busca e Apreensão Criminal nº 27-DF (2020/0114014-7), acolhido por iniciativa do eminente relator, Excelentíssimo Senhor Ministro Benedito Gonçalves, tendo sido, então, autorizada a expedição de doze mandados de busca e apreensão, no âmbito da “Operação Placebo”, em endereços direta ou indiretamente ligados ao Réu e a seus colaboradores.

Conforme destacado ainda na Denúncia, o eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça acima citado relatou que os investigadores afirmam existir “prova robusta” de ilicitude nos processos que levaram à contratação, por valor aproximado de R$ 850 milhões, da OSS IABAS para construir e gerir os hospitais de campanha no Rio de Janeiro, tudo sempre com a presumível anuência do Réu, que teria agido de modo a assegurar todo suporte necessário à realização das fraudes constatadas no âmbito da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro.

Sublinhe-se que a contratação, sem licitação, em caráter emergencial, da OSS IABAS destinava-se a atender duas finalidades interligadas, porém muito distintas, amalgamadas no mesmo milionário contrato: construir os hospitais de campanha e gerir os hospitais de campanha construídos.    

Assim, como salientam os denunciantes, o Réu teria criado, nos termos da respeitável Decisão do Excelentíssimo Senhor Ministro Benedito Gonçalves, “uma estrutura hierárquica para a prática de delitos dentro da estrutura do poder executivo fluminense para dar suporte aos contratos fraudulentos para originar ações de combate ao coronavírus no Estado do Rio”. Ainda segundo o eminente relator no Superior Tribunal de Justiça, as provas estariam nas diferentes propostas orçamentárias apresentadas ao Poder Executivo, que teriam sido fraudadas para dar aparência de concorrência e legalidade à contratação da referida instituição, com vistas à prestação dos serviços de montagem e desmontagem de tendas, instalação de caixas d’água e de geradores de energia, colocação de piso, entre outros itens, para a estruturação dos hospitais de campanha.

Após aceita pela augusta Casa Legislativa, a peça denunciatória foi encaminhada ao egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a fim de que instalasse, na forma da Lei, o competente Tribunal Especial Misto, responsável pelo processamento e pelo julgamento do governador.

Na data de 05 de novembro de 2020, este Tribunal Especial Misto, reunido em sessão presencial, sob a presidência do Exmo. Senhor Desembargador Cláudio de Mello Tavares, decidiu, por unanimidade, receber a denúncia por crime de responsabilidade referente à OSS Unir Saúde e, por maioria, receber a denúncia por crime de responsabilidade referente à OSS IABAS.    

4. Primeiro Eixo da Acusação: Requalificação da OSS Unir Saúde

Com relação ao primeiro eixo da acusação, qual seja, a requalificação da OSS Unir Saúde, foi instaurado, conforme já mencionado anteriormente, o competente processo administrativo n° E-08/001/1170/2019, com vistas à apuração de indícios de irregularidades cometidas pela referida entidade na execução dos contratos de gestão das unidades estaduais de saúde sob sua responsabilidade. Assegurado o contraditório e a ampla defesa nos autos do referido processo administrativo, restaram comprovados indícios de irregularidades na execução dos aludidos contratos, o que ensejou a aplicação da penalidade de desqualificação da OSS Unir Saúde, fato consumado com a edição da Resolução Conjunta SES/SECCG nº 664/2019, de 16 de outubro de 2019. Trata-se de ato baixado, em conjunto, pelo então Secretário de Estado de Saúde, Senhor Edmar José Alves dos Santos, e pelo então Secretário de Estado da Casa Civil e Governança, Senhor André Luís Dantas Ferreira. Convém destacar, a respeito da fundamentação do referido ato, o fragmento que se segue, oriundo do parecer técnico-jurídico emitido pela Subsecretaria Jurídica da Secretaria de Estado de Saúde, que é bastante eloquente:

“(...) Sendo assim, considerando as diversas denúncias de malversação de recursos públicos pela OSS UNIR e a constatação de várias irregularidades na execução de contratos de gestão celebrados com esta SES, incluindo a parte estrutural relativa à manutenção predial das unidades de saúde, entende-se que juridicamente viável a desqualificação da entidade em questão, tendo sido assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa da OSS. Em paralelo, salienta-se que, conforme se depreende dos arts. 4º da Lei n° 6.043/2011 e 1°, do Decreto Estadual n° 43.261/2011, a qualificação de uma entidade em Organização Social tem natureza discricionária, ou seja, o órgão administrativo encarregado de perfazer a qualificação da entidade em OSS, além dos requisitos normativos estabelecidos, estudará a conveniência e oportunidade, motivadamente, de qualificar, ou não, a entidade. Noutros termos, por ser o ato de qualificação de entidades privadas sem fins lucrativos em Organizações Sociais de Saúde ato de natureza discricionária, desde que motivadamente e garantido o contraditório e a ampla defesa, é juridicamente possível a desqualificação fora das hipóteses regulamentares, por tratar de hipóteses exemplificativas. (...)III. CONCLUSÃO

Em face dos fatos expostos, esta Subsecretaria Jurídica entende que, em tese, há indícios de irregularidades que tornam juridicamente viável a desqualificação da OSS Unir. Dessa forma, encaminha-se os autos à Subsecretaria Geral.”

 

 

 A citada Resolução Conjunta tinha amparo nos parágrafos 1° e 2° do artigo 38, da Lei Estadual n° 6.043, de 19 de setembro de 2011, posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 43.261, de 27 de outubro de 2011, como já foi declinado anteriormente

Apesar de cumpridos os requisitos para aplicação da sanção à OSS Unir Saúde, esta, inconformada com sua desqualificação, interpôs Recurso Administrativo, com amparo no art. 57 da Lei Estadual n° 5.427, de 1º de abril de 2009, dirigido à autoridade hierarquicamente superior, no caso concreto, ao chefe do Poder Executivo estadual.

No dia 23 de março de 2020, o Réu, fazendo uso de seu poder discricionário e fundado unicamente nos elementos subjetivos da oportunidade e conveniência da Administração Pública, deu provimento ao mencionado recurso administrativo. Em nota à imprensa, a assessoria do governador afirmou que “(...) o processo administrativo em questão foi julgado em conformidade com os princípios da legalidade, moralidade, eficiência, publicidade e impessoalidade (...)” e alegou, também, que a decisão do Réu de revogar a desqualificação da OSS Unir Saúde tinha o propósito de “não impactar no adequado funcionamento das unidades de saúde mantidas por ela.” (ALERJ-Comissão Especial COVID-19. Relatório Final, 2020, p. 392).

Ocorre que as investigações conduzidas pela Polícia Federal (PF), Ministério Público Federal (MPF) e Receita Federal (RF) demonstraram a existência de um complexo e sofisticado esquema, com atuação no âmbito da saúde pública estadual, composto por dezenas de indivíduos que se revezavam à frente de pessoas jurídicas para ocultar a figura do empresário Mário Peixoto. Este empresário, além do controle de várias empresas, detinha também forte influência na gestão de organizações sociais prestadoras de serviços à Secretaria de Estado de Saúde, responsáveis pela administração de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), espalhadas em diversos municípios do Rio de Janeiro, sobretudo na Baixada Fluminense, como é o caso dos municípios de Mesquita, Queimados, Magé e Nova Iguaçu.

Para isso, o empresário contava com a participação de outras pessoas, constituindo uma rede complexa, com divisões de tarefas entre seus membros, o que se dava, segundo aquelas investigações, da seguinte forma: (a) núcleo econômico: composto pelo empresário Mário Peixoto e seu filho Vinícius Ferreira Peixoto; (b) núcleo administrativo: composto pelo senhor Luiz Roberto Martins; (c) núcleo operacional: composto pelos senhores Alessandro de Araújo Duarte, Cassiano Luiz e Juan Elias Neves de Paulo; (d) núcleo político: composto pelos senhores Wilson José Witzel e Lucas do Carmo Tristão.

Importa ainda destacar que o citado empresário foi um dos alvos da “Operação Favorito”[14], deflagrada em razão de investigações realizadas pelo MPF e pela PF, com vistas à apuração de desvio de dinheiro público em contratos na saúde pública estadual, envolvendo organizações sociais, e de pagamento de propina a agentes públicos em troca da manutenção ou da concessão de novos contratos, tendo havido, segundo tais investigações, expansão dessas ações ilícitas durante a pandemia do novo coronavírus, notadamente por meio de organizações sociais.

O senhor Luiz Roberto Martins, integrante do núcleo administrativo do grupo do citado empresário, também foi investigado como um dos alvos da Operação “Filhote de Cuco”[15], que tinha como objetivo apurar a existência de superfaturamento nos contratos firmados entre o governo do estado do Rio de Janeiro e a organização social responsável pela administração de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) nos bairros de Botafogo (Nova Iguaçu), Cabuçu (Nova Iguaçu), Campo Grande I (Rio), Campo Grande II (Rio), Santa Cruz (Rio), Lafaiete (Duque de Caxias) e Sarapuí (Duque de Caxias), além das unidades situadas nos municípios de Magé e Mesquita.

Cabe destacar, ainda, que, além de sua prisão, também foram encontrados, em sua residência, no município de Vassouras-RJ, valores que somados totalizam a monta de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais).

            Ainda sobre o senhor Luiz Roberto Martins, além das atividades referentes ao núcleo administrativo da organização liderada pelo empresário Mário Peixoto, chegou a acumular o cargo de presidente do Instituto Data Rio de Administração Pública (IDR), organização social que foi sucedida pela OSS Unir Saúde na gestão das UPAs citadas anteriormente.

            Embora o empresário Mário Peixoto nunca tenha figurado formalmente nos quadros das citadas organizações sociais, no curso das investigações restou comprovado que, de fato, era ele quem detinha absoluto domínio e controle sobre suas atividades, o que fazia com auxílio e atuação do senhor Luiz Roberto Martins.

Ao empresário Mário Peixoto cabia a função de articular a renovação de contratos, assim como a captação de novos contratos de gestão na área da saúde pública estadual, para as organizações sociais que controlava, ainda que por intermédio e com auxílio de terceiros, mediante pagamento de vantagens financeiras indevidas a agentes públicos integrantes do Poder Executivo estadual.

Esclarecedoras interceptações telefônicas no terminal utilizado pelo senhor Luiz Roberto Martins, devidamente autorizadas no âmbito das investigações da “Operação Favorito”, revelam a atuação do empresário Mário Peixoto, de forma velada, na tentativa de reverter a desqualificação da OSS Unir Saúde.

Em conversa com o interlocutor, identificado apenas como Elcyr, Luiz Roberto Martins refere-se a um acerto entre o empresário Mário Peixoto e o Réu a fim de assegurar a requalificação daquela organização social. Na oportunidade, revela ter havido pagamento de propina a um agente público não identificado com o fito de conseguir a reabilitação da entidade, deixando claro que tinha conhecimento da referida decisão, antes mesmo de sua publicação no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (DOERJ). Vejamos parte da degravação do citado diálogo, ocorrido no dia 20 de março de 2020:

“(...)

LUIZ: O pessoal está todo doido atrás de mim para me dar contrato

ELCY: hein?

LUIZ: O pessoal está todo doido atrás de mim para me dar contrato

ELCY: já

LUIZ: vai revogar aquela desclassificação da UNIR. Recebi até ligação dele. Voltar com aquelas quatro da baixada.

ELCY: beleza

(...)

LUIZ: Diz o Mario que foi ele que acertou junto com o Governador. Mas não publicou ainda. Eu estava comprando isso de um outro cara.

ELCY: aí volta?

LUIZ: As quatro de Nova Iguaçu não tem segundo colocado. Então está com contrato emergencial ainda. Se revogar e publicar a revogação tem que republicar o resultado do edital. (...)”

 

Apesar de o nome de Luiz Roberto Martins também não constar oficialmente no quadro de diretores, presidentes ou responsáveis pela OSS Unir Saúde, o senhor Nelson Bornier, ex-Prefeito do município de Nova Iguaçu, recentemente falecido, político experiente e dotado de relativa influência no governo estadual, durante a gestão do Réu, ao menos no tocante a questões atinentes a seu município, por ocasião de sua oitiva como testemunha arrolada pelo Tribunal Especial Misto, respondeu ao relator:

“O SR. WALDECK CARNEIRO – O senhor conhece o Sr. Luiz Roberto Martins?

O SR. NELSON ROBERTO BORNIER DE OLIVEIRA – Conheço.

O SR. WALDECK CARNEIRO – Conhece de onde?

O SR. NELSON ROBERTO BORNIER DE OLIVEIRA – Conheço quando da fundação das duas UPAs que existem na nossa cidade: uma no bairro Botafogo e outra no bairro de Cabuçu; uma se deu ali, precisamente, de Cabuçu, em 2008, e a de bairro Botafogo, em torno de 2010, 2011, que era administrada pela empresa que ele participa.

O SR. WALDECK CARNEIRO – Certo.

E o senhor se recorda do nome dessa empresa da qual ele participa?

O SR. NELSON ROBERTO BORNIER DE OLIVEIRA – É Unir.+

O SR. WALDECK CARNEIRO – É Unir Saúde.

O SR. NELSON ROBERTO BORNIER DE OLIVEIRA – Não sei a razão social, se é nome fantasia ou se é nome social.

O SR. WALDECK CARNEIRO – Claro, claro.

E o senhor, por acaso, sabe que função ou que papel ele exercia nessa empresa ou exerce?

O SR. NELSON ROBERTO BORNIER DE OLIVEIRA – Não sei. Um dos responsáveis. O cargo que ele exercia, se era Presidente ou alguma Diretoria, eu não sei, mas era um dos membros da Unir.

 

Em diálogo com o mesmo senhor Nelson Bornier, em outra interceptação telefônica, datada do dia 24 de março de 2020, mesmo dia em que foi publicada no DOERJ a requalificação da OSS Unir Saúde, por ato discricionário do Réu, Luiz Roberto Martins afirmou: “o zero um do palácio assinou aquela revogação da desclassificação da UNIR”, fazendo clara referência ao chefe do Poder Executivo fluminense.

LUIZ: estou te ligando para te dar uma notícia boa

BORNIER: hum

LUIZ: O zero 1 do palácio assinou aquela revogação da desclassificação da UNIR.

BORNIER: aquele relatório

LUIZ: aquela desclassificação que impediu a gente de assumir as UPAs. Eu sei que tem muito pai aqui e eu teria que fazer um DNA para saber quem é o pai. (...)”

 

 

Por fim, ainda em relação à influência do empresário Mário Peixoto junto à OSS Unir Saúde, o ex-Secretário de Estado de Saúde Edmar Santos, em seu depoimento prestado à Procuradoria Geral da República no Rio de Janeiro, em 25 de julho de 2020, declarou:

“(...)QUE também no início de sua gestão foi levantada a situação de 3 OSs mais problemáticas: UNIR, Pro Saúde e Cruz Vermelha; QUE além disso, havia boatos de que a Cruz Vermelha seria ligada a PAULO MELO e a UNIR seria ligada a MÁRIO PEIXOTO; (...)”

De forma muito mais evidente, o ex-Secretário de Estado de Saúde, em depoimento ao TEM, respondendo ao relator, deixou claro que recebeu ordem do Réu para participar de almoço com o Sr. Mário Peixoto e com o Sr. Lucas Tristão, no restaurante Aspargus, situado à Rua Senador Dantas, Centro do Rio. Segundo o depoente, durante o almoço, o empresário conversou predominantemente sobre a desqualificação da OSS Unir Saúde, pedindo que tal fato não ocorresse, e também sobre a ampliação de seus negócios na área da saúde, no âmbito da administração estadual. Antes da resposta ao relator, o depoente já havia revelado o episódio do almoço, quando respondeu diretamente ao Réu, que atuava como seu inquiridor. Ao responder ao Réu sobre a questão, o ex-Secretário de Saúde esclareceu, a bem da verdade, que o Réu solicitara o seu comparecimento ao almoço, mas não dera orientação expressa para que atendesse às demandas do empresário Mário Peixoto. Ao ouvir tal resposta, o Réu aquiesceu, afirmando: “Está certo”. Ou seja, não contestou o fato de que pediu ao Secretário para almoçar com o empresário. Vejamos os diálogos:         

“O SR. Wilson José Witzel: O senhor pode repetir, por favor?

O SR. Edmar José Alves dos Santos: Eu posso. O Senhor me pediu que fosse ao almoço, determinou que fosse ao almoço. Eu não tinha nenhuma proximidade nem com Lucas Tristão àquela época. Eu fui ao almoço do Mário Peixoto a seu pedido.

O SR. Wilson José Witzel: A meu pedido.

O SR. Edmar José Alves dos Santos: Mas não recebi nenhuma ordem que atendesse aos pedidos dele. Então, realmente... mas a conversa toda ficou clara, que é Mário Peixoto quem está à frente da Unir e que tinha outros interesse na saúde, que ele queria introduzir outras empresas dele que pudessem negociar, vender, fazer negócios com a saúde.

O SR. Wilson José Witzel: Está certo.”

 

Diante disso, resta comprovada a existência de uma potente rede ligada ao grupo do empresário Mário Peixoto, com atuação de forma estruturada e coordenada, contando inclusive com divisão de tarefas entre seus membros e com incidência sobre a administração pública estadual, durante a gestão do Réu. Aliás, percebe-se aí nítida contradição nas falas do Réu. Em resposta ao Desembargador Fernando Foch, o governador afastado chegou a afirmar que exonerava secretários que tivessem relações com empresários. Acrescentou que, em seu governo, essa era “a norma da casa”. Ora, nesse caso, o próprio Réu infringiu sua normativa, quando pediu que seu secretário de Saúde fosse almoçar com um empresário.    

Além do grupo de influência liderado pelo empresário Mário Peixoto, havia também, no âmbito da saúde pública estadual, outro grupo atuante, diretamente ligado ao Senhor Everaldo Dias Pereira (doravante, Pastor Everaldo). Político influente no cenário fluminense, o Pastor Everaldo era presidente nacional do Partido Social Cristão (PSC), agremiação político-partidária do Réu, e gozava de trânsito livre no Palácio Guanabara, sede do governo do estado do Rio de Janeiro.

No núcleo diretamente ligado ao Pastor Everaldo, identifica-se, com destaque, o empresário Edson Torres e o próprio Secretário de Estado de Saúde à época, Senhor Edmar José Alves do Santos.

Segundo declarado pelo próprio Edmar Santos, o empresário Edson Torres tinha grande proximidade com o Pastor Everaldo, chegando ao ponto de se intitular “sócio do PSC”, de forma que ambos se consideravam “proprietários” do partido.

Importa ainda destacar que o empresário Edson Torres atuou de forma intensa no processo que culminou na indicação do Senhor Edmar Santos para o cargo de Secretário de Estado de Saúde. Conforme declarado pelo próprio ex-secretário, que foi sondado pelo empresário a esse respeito:

“(...) Que passada a eleição e tendo sido eleito, no período de transição, o colaborador recebeu ligação por voz por Whatsapp de EDSON TORRES; Que EDSON disse que o futuro cargo de Secretário de Saúde estava entre o colaborador e FERNANDO FERRY; (...) Que a procura por outro nome tinha como objetivo emplacar um nome do PSC ao cargo; Que o colaborador percebeu essa primeira reunião como uma mera sondagem, não havendo qualquer tratativa sobre negócios ilícitos; (...) Que, após certo tempo, em novembro de 2018 .o colaborador é indicado como futuro secretário de saúde; (...)” (grifos nossos)

 

No mesmo sentido se manifestou, em depoimento aos membros do Tribunal Especial Misto, na qualidade de testemunha, o empresário Edson Torres. Com efeito, em resposta ao relator sobre a nomeação de Edmar Santos para o cargo de Secretário de Estado de Saúde, afirmou:

“O SR. WALDECK CARNEIRO – Entendo, entendo.

E, uma vez eleito, em segundo turno, o candidato Wilson Witzel, o senhor, ao lado do Pastor Everaldo, ajudou de alguma forma na montagem da equipe de Governo, a indicar Secretários, a indicar membros para o futuro Governo que iria se instalar?

O SR. EDSON DA SILVA TORRES – Diante da minha relação de amizade e de confiança com o Everaldo, sim. Participei de ajuda de algumas escolhas.

O SR. WALDECK CARNEIRO – Entendi.

Que escolhas? De que escolhas o senhor participou de alguma forma?

O SR. EDSON DA SILVA TORRES – O próprio Edmar. Final de outubro, ele procurou uma pessoa próxima a nós, a mim, e pediu uma reunião comigo. Marcamos um café da manhã no Hotel Hilton, eu estive no Hotel Hilton com ele. O Edmar tinha um projeto político de ser diretor do Hupe, depois Reitor da Uerj e indo a Deputado. Era o projeto político dele, que ele tinha compartilhado comigo anteriormente. E, nessa hora, nesse café, ele me pediu se tinha como encaminhar o currículo dele a um pleito a um cargo no Governo do Estado depois da... Já com a eleição do Wilson já definida, Wilson Witzel, o então Governador. E assim eu fiz. Conversamos, ele... A conversa seria para ele... Eu entendia que a conversa seria para ele tratar da eleição dele a Reitor da Uerj, porém, ele disse que não, que ele pretendia ver se conseguia um cargo por indicação política. Eu encaminhei o currículo dele, que é um bom currículo, ao Everaldo. O Everaldo encaminhou ao Governador, o Governador o atendeu e o escolheu. (…)

 

Diante dos elementos probatórios restituídos até aqui, resta clara a existência de dois braços econômicos atuantes na Secretaria de Estado de Saúde: um ligado ao empresário Mário Peixoto e outro ligado ao presidente nacional do PSC, Pastor Everaldo.

Nesse sentido inclusive, manifestou-se Edmar Santos, em depoimento prestado à Procuradoria Geral da República (PGR). Vejamos:

“Que existem três grupos que compõem o Governo WILSON WITZEL, encabeçados por: (1) MARIO PEIXOTO; (2) PASTOR EVERALDO e (3) JOSÉ CARLOS DE MELO; Que MARIO PEIXOTO é o grupo que o colaborador tem menos informações; Que sabe dizer, no entanto, que é o grupo mais importante e que detém mais poder no Estado; (...) Que os grupos de PASTOR EVERALDO tem equivalente importância ao grupo de MARIO PEIXOTO; Que ambos tem acesso direto ao governador; Que quanto às vantagens ilícitas, o grupo de MARIO PEIXOTO é maior que o do PASTOR; (...) Que o colaborador tem maior conhecimento do grupo do PASTOR EVERALDO;”(grifos nossos)

 

Confirmada a existência de dois grupos econômicos e rivais atuantes no âmbito da saúde pública estadual, quais sejam, o grupo ligado ao empresário Mário Peixoto e o grupo ligado ao Pastor Everaldo, cumpre destacar que, segundo declarações de Edmar Santos, prestadas à PGR, ambos conviviam em constante clima de tensão e de disputa pelo poder e pelos contratos, no âmbito da administração estadual. A esse respeito, reconhece Edmar Santos, “(...) que Peixoto e Everaldo viviam em constante tensão”.

Ainda segundo Edmar Santos, a interface de comunicação entre o grupo de Mário Peixoto e o Réu era feita por intermédio de Lucas Tristão, que ocupou o cargo de Secretário de Estado de Desenvolvimento, Energia e Relações Internacionais na gestão do Réu.

Sobre Lucas Tristão, importa destacar que, além de homem de confiança do Réu, era também amigo pessoal do empresário Mário Peixoto, relação essa confirmada, por ambos, em depoimento prestado ao Tribunal Especial Misto.

Quando perguntado pelo relator sobre a relação de amizade com Lucas Tristão, o empresário Mário Peixoto respondeu:

“O SR. WALDECK CARNEIRO - Entendi. Então, pode-se dizer que tinha uma relação profissional, acabou evoluindo para uma relação também de certa maneira de amizade?

O SR. MARIO PEIXOTO - É, porque, na realidade, o Advogado Lucas Tristão, como ele era do Espírito Santo, praticamente não tinha currículo no Rio, ele me procurava muito. Aí, acabou nascendo uma amizade.

 

Na mesma direção se manifestou o senhor Lucas Tristão em seu depoimento ao Tribunal Especial Misto, em resposta à Acusação:

O SR. LUIZ PAULO – Senhor presidente, eu gostaria que a testemunha nos informasse qual era a relação dele com o senhor Mário Peixoto e filho.

O SENHOR PRESIDENTE: Pode responder.   

O SR. LUCAS TRISTÃO DO CARMO – O senhor Mario Peixoto foi meu cliente enquanto exercia a advocacia. O filho do senhor Mario Peixoto também foi meu cliente quando eu exercia a advocacia. E, desde 1º de janeiro de 2019, quando me mudei para o Rio de Janeiro, desenvolvi um relacionamento de amizade com ambos”

 

Em outro momento, ainda em seu depoimento ao Tribunal Especial Misto, o empresário Mário Peixoto deixa claro que há uma relação de proximidade entre ele e Lucas Tristão. Ao ser questionado a esse respeito pela Acusação, assim respondeu:

“O SR. LUIZ PAULO – Depois desse encontro quando o senhor conheceu o Governador Wilson Witzel, eu pergunto ao senhor, se foi nesse encontro também que o senhor conheceu o Sr. Tristão?

O SR. MARIO PEIXOTO – Não, senhor.  Conheci Lucas Tristão lá em Angra dos Reis. Não lembro se em fevereiro ou março, por aí.

O SR. LUIZ PAULO – O Sr. Tristão afirmou aqui a este Tribunal que ele tem uma relação próxima ao senhor e ao seu filho Vinícius, inclusive frequentando as casas.  O senhor confirma esse depoimento?

O SR. MARIO PEIXOTO – Em parte.  Ele nunca frequentou a casa do meu filho. Às vezes na minha casa, ele almoçou algumas vezes na minha casa.

O SR. LUIZ PAULO – Eu confesso que não consegui ouvir.

O SR. MARIO PEIXOTO – Vou chegar mais próximo.  Eu falei que ele teve alguns encontros de almoço na minha casa, mas não na casa do meu filho. Conheceu meu filho na minha casa e encontrou-se com ele algumas vezes lá.(...)”  (grifos nossos)

 

Ainda para corroborar a grande proximidade entre o empresário Mário Peixoto e Lucas Tristão, no bojo das investigações da “Operação Favorito”, foi interceptado diálogo telefônico entre Vinícius Peixoto, filho de Mário Peixoto, e a senhora sua mãe. Vejamos:

“Vinicius: meu teste deu positivo

mãe: mentira, você está brincando comigo.

Vinicius: é

mãe: meu Deus Vinicius, e as crianças e a Camila?

Vinicius: deu todo mundo negativo, só o meu deu positivo

mãe: eu estou bem. Você estava sentindo dor de cabeça e febre

Vinicius: eu tive febre e dor de cabeça

mãe: e agora está se sentido bem?

Vinicius: agora estou sentido bem mãe: a gente tem imunidade, não é todo mundo que fica daquele jeito não, entendeu? Tem gente que ... o vírus passa pelo corpo da pessoa e não sente nada.

(...)

Vinicius: a gente acha que foi um dia que eu estive na casa do meu pai. O Lucas teve, né? O Lucas estava lá, o Heitor brincou com ele e pode ter ‘pego’ aquele dia lá. O primeiro que ficou doente foi o Heitor ou a Helena, um dos dois. Estava lá o Lucas com a esposa.

mãe: O Lucas irmão do Matheus?

Vinicius: não, é o Lucas secretário.

mãe: entendi, um grandão

Vinicius: É. Lá no governo todo mundo teve. Mãe: o que ele foi fazer na casa dos outros?

Vinicius: meu pai, ideia de maluco. Todo mundo com corona no governo e chama o cara para ir na casa dele.

mãe: tem sorte de não ter ‘pego’, o seu pai. Fez o exame?

Vinicius: fez, quando o do Lucas deu positivo ele fez os exames.”

 

Em sintonia com a estreita relação comprovadamente existente entre o senhor Lucas Tristão, lugar-tenente do Réu, e o empresário Mário Peixoto, em depoimento prestado à Procuradoria Geral da República no Rio de Janeiro, o ex-Secretário de Estado de Saúde Edmar Santos afirmou que o próprio Réu atribuía ao citado empresário o sucesso de sua eleição. No depoimento, disse: “Que WILSON WITZEL atribui a sua vitória eleitoral a MARIO PEIXOTO”.

Em contraponto às negativas do empresário Mário Peixoto quanto à sua participação na vitoriosa campanha eleitoral do Réu, outro ex-integrante do governo estadual, o senhor Hormindo Bicudo Neto, ex-Controlador Geral do estado do Rio de Janeiro, que se qualificou como amigo do Réu, em depoimento, na condição de informante, ao Tribunal Especial Misto, assim afirmou:

O SR. HORMINDO BICUDO NETO - Conheci o Mario Peixoto bem antes. Conheci o Mario Peixoto quando eu fui Controlador Geral do Município de Nova Iguaçu, na gestão do Lindbergh, e o Mario Peixoto já representava nas cooperativas de trabalho. E havia tanto questionamento sobre a possibilidade de as cooperativas prestarem serviço público ou não.

Na época, como Controlador, e conhecendo bem a dinâmica do Tribunal de Contas, eu consegui emitir um parecer, naquela época era um parecer sazonal, de acordo com a necessidade da saúde naquela época, que foi inclusive aprovado pelo Tribunal de Contas depois. A partir dali, Mario Peixoto passou a ter um contato comigo praticamente profissional, porque houve um respeito e tudo.

Muitos anos depois se passaram, eu não tive mais contato com ele, fui ter um novo contato com ele justamente quando da candidatura. Porque ele tinha um instituto de pesquisa...

O SR. LUIZ PAULO - Ah, o Sr. Mario Peixoto tinha um instituto de pesquisa?

O SR. HORMINDO BICUDO NETO - Sim, ele tinha um instituto de pesquisa. Não sei se ele ainda tem hoje.

O SR. LUIZ PAULO -  Não, não. Eu só fiquei curioso.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO -  Ele tinha um instituto de pesquisa e eu pedi a ele uma pesquisa. Porque essa ideia da candidatura pudesse ser válida, eu pedi a ele uma pesquisa. Ele me fez uma pesquisa, ele sempre faz pesquisa, ele inseriu lá alguns requisitos da pesquisa para a gente poder analisar tecnicamente e saber a viabilidade ou não. Afinal de contas a pessoa teria que largar a carreira de magistrado, não podia ir para uma aventura.

Então, foi assim. E dali eu acabei me desligando deles porque eu não pude mais continuar na campanha.

O SR. LUIZ PAULO – Pois é, mas nessa pesquisa que o Sr. Mario Peixoto patrocinou para o Sr. Wilson Witzel, seguramente deu um resultado...

(...)

O SR. LUIZ PAULO – Sim, mas função dessa pesquisa que ele patrocinou...

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Sim. Sim.

O SR. LUIZ PAULO – ... deve ter dado indicadores de que seria positiva a candidatura do Wilson Witzel.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – É. Numa análise que o senhor conhece bem, não é?

O SR. LUIZ PAULO – Sim, sim, mas deu algum nível de positividade, tanto é que ele virou candidato.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Exatamente.” (grifos nossos)

 

Logo, fica claro que há relações de proximidade que unem o Réu, o seu homem de confiança e empoderado secretário, Lucas Tristão, e o empresário Mário Peixoto. Essas relações foram importantes para dar algum nível de proteção aos interesses do empresário na administração estadual, durante a gestão do Réu. Assim, considerando que a OSS Unir Saúde estava vinculada ao aludido empresário, que a dirigia ou, no mínimo, representava seus interesses, tal situação colidia com os interesses do grupo concorrente, liderado pelo Pastor Everaldo, em conluio com o empresário Edson Torres, notadamente em relação aos contratos na área de saúde. Ora, como Edmar Santos torna-se secretário com a interveniência da citada dupla, sua ação, como titular da Secretaria, não favorecia as demandas e pretensões do empresário Mário Peixoto.

Com efeito, assim que assumiu a Secretaria de Estado de Saúde, o então Secretário Edmar Santos deu início à auditoria sobre a situação das organizações sociais, que, segundo ele, trabalham, todas, na esfera da ilicitude. Ele assim se pronuncia, em resposta ao relator, conforme o diálogo abaixo:

O Senhor WALDECK CARNEIRO: o senhor afirmou, em uma de suas respostas aqui hoje, que não há nenhuma OS que trabalhe de forma lícita na saúde. Isso se aplica à Unir e à Iabas na sua gestão também?

O Senhor EDMAR SANTOS: Se aplica a todas (...).

O Senhor WALDECK CARNEIRO: Certo, mas também à Unir e à Iabas...

O Senhor EDMAR SANTOS: Também à Unir e à Iabas.”

 

A auditagem realizada na Secretaria, em que todas as organizações sociais praticavam ilicitudes, conforme declaração do próprio secretário, identificou três organizações sociais, tidas como as mais “problemáticas”: OSS Unir Saúde, OSS Pró-Saúde e OSS Cruz Vermelha. Apesar disso, apenas a OSS Unir Saúde teve instaurado em seu desfavor processo administrativo com vistas à sua desqualificação, sendo as demais substituídas por outras organizações sociais, porém sem sofrer a penalidade máxima de desqualificação.

Apesar de devidamente respeitados o contraditório e a ampla defesa da OSS Unir Saúde, bem como ter sido o ato de desqualificação firmado pelos secretários estaduais responsáveis, na forma dos diplomas legais que regem a matéria, a instauração do processo administrativo n° E-08/001/1170/2019 (desqualificação da Unir) se deu por determinação do ex-Secretário de Estado de Saúde, pessoa intimamente ligada, como já vimos, ao grupo do Pastor Everaldo, concorrente do grupo encabeçado pelo empresário Mário Peixoto. O vínculo do ex-secretário com a dupla Pastor Everaldo/Edson Torres é confirmado no depoimento do empresário ao MPF, como se observa a seguir:

“Que Edmar, no meio da conversa, perguntou ao depoente se o mesmo não poderia arrumar um cargo para ele; que Edmar disse que Witzel esteve no HUPE durante a campanha e tinha gostado da visita; que Edmar pediu que o depoente intercedesse junto ao governador eleito para a obtenção do cargo do secretário de saúde; que até então o depoente e Everaldo não tinham um nome para a secretaria de saúde; que como Witzel já conhecia Edmar de sua visita ao HUPE, acabou o escolhendo.”   

  

No entanto, na tentativa de evitar a desqualificação da OSS Unir Saúde, o Réu determinou que Edmar Santos fosse a um almoço com o empresário Mário Peixoto, com a presença do senhor Lucas Tristão, fato esse narrado pelo próprio ex-Secretário de Estado de Saúde, em seu depoimento aos membros do Tribunal Especial Misto, no último dia 07 de abril. Vejamos o diálogo:

O SR. WILSON JOSÉ WITZEL – Sim. O senhor disse que nunca teve nenhuma relação com o Mario Peixoto, nunca teve nenhum contato com ele (...)

O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS – À exceção do almoço que eu fui a pedido seu, junto com o Lucas Tristão, mais ou menos em junho, julho, a única vez que eu tive com o Mario Peixoto, não é? E que o tema principal da conversa dele foi realmente não desqualificar a Unir, me dando aí a certeza que ele seria o dono oculto da Unir porque ele quase não falou de outro assunto a não ser esse, e assim como o José Carlos, como o Everaldo, ele próprio, também, queria ter mais negócio na Saúde, como todo mundo queria ter mais negócio na Saúde.

(...)

O SR. WILSON JOSÉ WITZEL – Confirma, muito obrigado.

O senhor relata que teve um almoço com o Sr. Mario Peixoto e com o Secretário Lucas Tristão. Esse almoço está relatado – ressalto aqui, chamo a atenção do Tribunal que o almoço não está relatado no anexo, mas consta do Termo de Declaração a 24 de junho de 2020, em que aparece o almoço. Esse almoço de que participou o Sr. Lucas Tristão, a reunião tratou da permanência da OS Unir nos contratos da Secretaria de Saúde: “...A que o colaborador não sabe dizer se formalmente a OS está em nome de Mario Peixoto, mas ficou claro que, de fato, lhe pertencia”. O que o senhor pode esclarecer como “ficou claro que, de fato, lhe pertencia”?

O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS– Porque 90% do tempo que a gente almoçou, o Mario Peixoto tava preocupado em que a Unir fosse reabilitada, quer dizer, não fosse desqualificada, de que isso traria prejuízo para ele e que, além disso, ele teria interesse em outros negócios de empresas dele na Saúde. Ou seja, se ele quer outros negócios de empresa dele, ele está afirmando que a Unir também é uma empresa dele, não é? Então, na conversa, no almoço, foi muito claro isso. A insistência do próprio Lucas, também, que eu atendesse ao Mario Peixoto. (...)” (grifos nossos)

 

É interessante constatar que o Réu se contradisse, ao ser interrogado pelo relator na mesma sessão, quando negou que tenha pedido ao ex-secretário para que fosse ao referido almoço. Não se trata simplesmente de contradição com a fala de seu ex-secretário, mas com sua própria fala. Afinal, ele afirmou “está certo”, quando Edmar Santos repetiu que tinha ido ao tal almoço a pedido do Réu, mas que este não pedira ao secretário para atender a demanda do empresário. Ora, se o Réu não apenas não contestou seu ex-secretário, mas confirmou seu depoimento, classificando-o como “certo”, por que então negou a ordem dada ao seu então secretário para participar do almoço, quando indagado pelo relator a esse respeito? Vejamos o breve diálogo:

“O SR. WALDECK CARNEIRO – Alguma vez o senhor chegou a pedir ao Secretário de Saúde Edmar Santos que participasse de um almoço com o Sr. Mario Peixoto e Sr. Lucas Tristão?

O SR. WILSON JOSÉ WITZEL – Hipótese alguma.

 

Sem sucesso na tentativa de reverter a situação da OSS Unir Saúde junto ao seu então secretário de Saúde, o Réu viu publicada a Resolução Conjunta SES/SECCG nº 664/2019, que desqualificou a entidade como organização social.

Em depoimento ao Tribunal Especial Misto, o Senhor Edmar Santos disse que tomou conhecimento da possibilidade de requalificação da OSS Unir Saúde em conversa com o Réu, na varanda do Palácio Guanabara, ocasião em que, segundo o depoente, alertou o governador de que a requalificação da OSS Unir Saúde seria “batom na cueca”. Na oportunidade, o Réu respondeu, segundo o depoente, que “era um pedido que ele não poderia deixar de atender”. Vejamos:

 

“O SR. WALDECK CARNEIRO – Bem, quando o senhor alertou o Governador afastado que seria, na sua expressão, “batom na cueca” a requalificação da Unir, o senhor queria dizer exatamente o quê? E como ele reagiu a esse alerta?

O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS – Eu queria dizer que era tão óbvio todas as evidências, que não tinha volta. Não tem como fazer diferente. Se ele assina qualquer coisa de... E, pior, o decreto... Na verdade, pelo decreto, o Governador não teria nem essa autoridade. Porque a qualificação de uma OS ou sua desqualificação tem que ser concomitante da Saúde com a Casa Civil.

Então, ainda tinha essa questão sobre o próprio decreto estadual que trata sobre as OSs no nosso âmbito.

Mas, pior que isso, com tantas evidências no processo que foi feito – um processo longo, bem documentado –, como é que, no dia seguinte, alguém assina e fala: não, está qualificado de novo. Não é? Óbvio, aquela lista de processo, bem-feito, com parecer da PGE, é um “batom na cueca”. Não é?

O SR. WALDECK CARNEIRO – E em relação...

O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS – E ele reagiu(...) Ele reagiu assim: não, não tem jeito, tenho que atender o pedido. E é o pedido do Mario Peixoto. Então, ele estava pressionado a atender o pedido, apesar dos riscos que isso trazia.

O SR. WALDECK CARNEIRO – Eu só queria entender... Desculpe, Dr. Edmar. Ele, então, respondeu dizendo que não teria jeito e era preciso atender ao pedido do senhor Mario Peixoto? Foi nesses termos, aproximadamente?

O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS É, que eu tenho que atender... Um pedido que eu não posso deixar de atender.

O SR. WALDECK CARNEIRO: Mas ele falou que era do Mario Peixoto?

O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS – Ele não falou do Mario Peixoto diretamente. Mas todo o contexto, desde a minha ... o pedido aí ... é do Mario Peixoto. Por que a Unir é de quem? Do Mario Peixoto. (grifos nossos)

 

Diante disso, em 24 de março de 2020, fazendo uso de seu poder discricionário, o Réu publicou despacho para requalificar a OSS Unir Saúde, sem qualquer parecer técnico que o fundamentasse, revogando o ato conjunto de seus secretários e tornando a entidade apta novamente para assumir novos contratos de gestão.

Na direção contrária à decisão de requalificação proferida pelo Réu, manifestou-se o senhor Hormindo Bicudo Neto, ex-Controlador Geral do Estado, amigo do governador afastado, em depoimento ao Tribunal Especial Misto. Quando indagado pelo Relator, se “não achava um pouco estranho que, para ter havido uma resolução conjunta da Secretaria de Estado de Saúde e da Casa Civil e Governança para desqualificar a Unir, isso tenha sido precedido por um parecer técnico e, para decretar a sua requalificação, o Governador não tenha consultado ninguém, não tenha se baseado em parecer técnico nenhum”, o ex-Controlador respondeu:

“O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Não concordo.

O SR. WALDECK CARNEIRO – Não concorda?

O SR. HORMINDO BICUDO NETO - Não concordo com essa atitude, não concordo com o ato, não posso lhe dizer tecnicamente, porque eu não li, nunca tive acesso a esse processo e nem aos pareceres que o fundamentaram, mas seria de bom alvitre, por uma questão até de cuidado, a qualquer gestor, de que encaminhe para os órgãos de controle determinadas situações em que possa correr risco a sua gestão. (...)” (grifos nossos)

 

Ainda sobre o tema, em seu interrogatório no Tribunal Especial Misto, o Réu foi esquivo, quando questionado pela Desembargadora Inês da Trindade Chaves de Melo, sobre a requalificação da OSS Unir Saúde. Vejamos:

“A SRA. INÊS DA TRINDADE CHAVES DE MELO – O senhor revogou a desclassificação da Unir Saúde contradizendo o parecer jurídico do Procurador responsável. O senhor considera prudente, responsável, esse ato administrativo, mesmo sabendo que a Unir respondia a 20 processos administrativos na Secretaria de Estado de Saúde por irregularidades na condução dos contratos existentes junto ao Governo Estadual, na área de Saúde, inclusive, um deles já com penalidade administrativa?

O SR. WILSON JOSÉ WITZEL – Desembargadora Inês, V. Exa. que é uma especialista no tema de improbidade, eu queria esclarecer que, assim como a Unir, várias outras OS também tinha problemas de irregularidade, 2018, 2017, 2016, foram anos em que essas organizações sociais tiveram pagamentos interrompidos por conta de várias crises financeiras. Assumimos um Governo com R$17 bilhões de restos a pagar e grande parte desses restos a pagar era em relação a organizações sociais e atividades ligadas à área da Saúde.

Então, a Unir estava dentro desse problema em que as irregularidades que elas alegavam – V. Exa. pode observar no processo – muitas delas eram por falta de pagamento. Então, não consertou o ar-condicionado, não colocou número de médicos que deveria ser colocado, isso era um problema que várias outras OS também tinham.” (grifos nossos)

 

A propósito desse quadro de irregularidades generalizadas, reconhecido pelo próprio Réu, é especialmente revelador o diálogo travado entre ele e a Desembargadora Teresa de Andrade Castro Neves, durante o interrogatório do governador afastado:

A Senhora Teresa de Andrade Castro Neves – A minha pergunta é justamente por que não, já que existiam outras, e o senhor estava ciente de que existiam outras com irregularidades (...).

O Senhor Wilson José Witzel: Então, foi essa pergunta que fiz para o secretário Edmar: ‘por que você não está fazendo a desqualificação das outras OSs que estão em situações muito piores?’   

A Senhora Teresa de Andrade Castro Neves – Mas então a opção foi para não punir ninguém, não para punir todos que estivessem errados?”

 

 

Diante do triste quadro instalado no estado do Rio de Janeiro, em meio a inúmeras suspeitas de corrupção e desvio de dinheiro público, envolvendo empresas privadas e organizações sociais, além de pagamento de vantagens a agentes públicos integrantes do Poder Executivo fluminense, no dia 14 de maio de 2020, por decisão da 7ª Vara Criminal da Justiça Federal do Rio de Janeiro, o empresário Mário Peixoto foi preso preventivamente, no âmbito da “Operação Favorito”.  

Curiosamente, ato contínuo à prisão do empresário Mário Peixoto, exatamente no dia seguinte ao fato, o Réu voltou atrás em sua decisão de requalificar a OSS Unir Saúde. Ora, mas se a requalificação discricionária da entidade, decidida monocraticamente pelo Réu, menos de dois meses antes, não tinha nenhuma relação com qualquer demanda do empresário Mário Peixoto, como várias vezes afirmou o Réu, por que então ele se apressou em rever o seu próprio ato?

À luz do ordenamento jurídico brasileiro, assiste razão à Acusação, tendo em vista que o Réu deixou de observar um princípio basilar da administração pública, qual seja, a moralidade, princípio que está diretamente vinculado ao conceito de probidade, que, por sua vez, abrange as noções de dignidade, honra e decoro, conforme tipificado no artigo 9°, item 7, da Lei Federal 1.079, de 10 de abril de 1950.

No que tange ao princípio da moralidade, trata-se de realçar que o agente público não pode se limitar a agir apenas dentro do estrito cumprimento dos comandos legais, embora isso seja fundamental. Mas, não é suficiente. O exercício da função pública requer também o estrito respeito ao imperativo da probidade. Nesse sentido, já se manifestou o Ministro Marco Aurélio Melo, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário nº 160.381 – SP, analisando o princípio da Moralidade à luz da Constituição Federal:

“Poder-se-á dizer que apenas agora a Constituição Federal consagrou a moralidade como princípio de administração pública (art 37 da CF). isso não é verdade. Os princípios podem estar ou não explicitados em normas. Normalmente, sequer constam de texto regrado. Defluem no todo do ordenamento jurídico. Encontram-se ínsitos, implícitos no sistema, permeando as diversas normas regedoras de determinada matéria. O só fato de um princípio não figurar no texto constitucional, não significa que nunca teve relevância de princípio. A circunstância de, no texto constitucional anterior, não figurar o princípio da moralidade não significa que o administrador poderia agir de forma imoral ou mesmo amoral. Como ensina Jesus Gonzales Perez “el hecho de su consagración en una norma legal no supone que con anterioridad no existiera, ni que por tal consagración legislativa haya perdido tal carácter” (El princípio de buena fé en el derecho administrativo. Madri, 1983. p. 15). Os princípios gerais de direito existem por força própria, independentemente de figurarem em texto legislativo. E o fato de passarem a figurar em texto constitucional ou legal não lhes retira o caráter de princípio. O agente público não só tem que ser honesto e probo, mas tem que mostrar que possui tal qualidade. Como a mulher de César.” (grifos nossos)

 

Logo, conclui-se que, não apenas a inobservância dos comandos legais, mas também a indesejável flexibilidade moral, configuram práticas criminosas, ainda que de natureza diversa. Afinal, o crime de responsabilidade contra a probidade administrativa não é um crime comum, mas um delito especificamente vinculado à adoção, por parte do agente público, de conduta incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa.

Sobre o mesmo tema, já dispunha o artigo 48, do Decreto nº 30, de 08 de janeiro de 1892[16], que, em seu capítulo IV, artigo 48, definia o crime de responsabilidade contra a probidade da administração. Vejamos:

“Art. 48. Comprometter a honra e a dignidade do cargo por incontinencia publica e escandalosa, ou pelo vicio de jogos prohibidos ou de embriaguez repetida, ou portando-se com inaptidão notoria ou desidia habitual no desempenho de suas funcções.”(grifos nossos, mantida a redação original)

Percebe-se, portanto, que a preocupação com a dignidade, a honra e o decoro, no exercício de cargos do alto escalão da gestão pública, há muito se faz presente no arcabouço legal brasileiro. Como exemplo, podemos citar:

  1. No âmbito da administração púbica federal: o artigo 9°, item 7, da Lei Federal n° 1.079, de 10 de abril de 1970:

“Art. 9° São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

(...)

7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.”(grifos nossos)

 

  1. No âmbito da administração pública estadual: o §1° e inciso II, do artigo 104 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro:

“Art. 104 - Perderá o mandato o Deputado:

(...)

II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

(...)

§ 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no Regimento Interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro da Assembleia Legislativa ou a percepção de vantagens indevidas.” (grifos nossos)

 

Na mesma linha, ainda na citada Carta Estadual, dispõe o artigo 146:

“Art. 146 - São crimes de responsabilidade os atos do Governador do Estado que atentarem contra a Constituição da República, a do Estado e, especialmente, contra:

(...)

V - a probidade na administração; (...)” (grifos nossos)

 

Cabe ressaltar ainda os ensinamentos do saudoso jurista e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Paulo Brossard[17], sobre a responsabilização de autoridades públicas pela prática de crime de responsabilidade e, consequentemente, por atentar contra a honra, a dignidade e o decoro do cargo:

“Só aquele que pode malfazer ao Estado, como agente seu, está em condições subjetivas de sofrer a acusação parlamentar, cujo escopo é afastar do governo a autoridade que o exerceu mal, de forma negligente, caprichosa, abusiva, ilegal ou facciosa, de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro do cargo” (grifos nossos)

 

Ora, mas quais seriam os conceitos de honra, dignidade e decoro do cargo de Governador? Antes de responder, faz-se necessário esclarecer o significado desses termos, à luz do vernáculo.

Segundo o Dicionário Houaiss[18], honra é o “princípio de conduta de quem é virtuoso, corajoso, honesto; cujas qualidades são consideradas virtuosas.”; no Dicionário Caldas Aulete[19], é definida como “princípio de conduta pessoal fundamentado na ética, honestidade, coragem e em outros traços de comportamento socialmente considerados virtuosos; DIGNIDADE; HONRADEZ”; e no Dicionário Michaelis[20], como “princípio moral e ético que norteia alguém a procurar merecer e manter a consideração dos demais na sociedade”.

Sobre dignidade, define-a o Dicionário Houaiss como a "qualidade moral que infunde respeito; consciência do próprio valor; HONRA, autoridade, nobreza"; no Dicionário Caldas Aulete, a dignidade é definida como a "qualidade moral que infunde respeito; HONRA; autoridade"; e, por fim, no Dicionário Michaelis, é definida como o "modo de proceder que transmite respeito; autoridade, HONRA, nobreza".

Já a palavra decoro, segundo o Dicionário Houaiss, é o "acatamento das normas morais; DIGNIDADE, HONRADEZ, pundonor"; no Dicionário Caldas Aulete, é definido como "honestidade, integridade, HONRADEZ"; e, segundo o Dicionário Michaelis, é "seriedade e decência ao agir; DIGNIDADE".

Percebe-se a evidente sinonímia que vincula as noções de dignidade, honra e decoro, que se aplicam à ocupação do cargo de governador. Se não, vejamos:

a) dignidade do cargo de Governador: dever de o Governador pautar sua conduta pelas mais rígidas normas éticas, o que lhe exige, em qualquer ocasião, alto padrão de comportamento, o que se refletirá em seu desempenho como chefe do Poder Executivo e no grau de respeito que lhe é devido;

b) honra do cargo de Governador: o apreço e o respeito de que é objeto ou se torna merecedor o Governador, perante os cidadãos em geral, os demais Poderes e os servidores públicos;

c) decoro do cargo de Governador: valor moral e social da Chefia do Governo, cujo elevado conceito social é essencial para o exercício válido e democrático do poder.

Com o mesmo entendimento, em sede de Alegações Finais, a Acusação discorre sobre a linha do tempo que embasa a participação e a ciência do governador afastado Wilson Witzel nas tomadas de decisão, sob a influência de atores políticos e operadores financeiros que o cercavam, deixando cristalina sua preferência por grupos econômicos em detrimento do interesse público. Vejamos:

“A questão central sob a ótica do Crime Responsabilidade do Governador Sr. Wilson Witzel, não é definir quem era o detentor último do poder decisório na estrutura da UNIR, se era Luiz Roberto Martins ou Mario Peixoto. E, sim, que a requalificação da UNIR foi ato ímprobo, que não atendeu o interesse público, e que a sua desqualificação em seguida foi uma tentativa de se dar uma falsa aparência de imparcialidade, quando os atos ímprobos já tinham sido descobertos pelas operações do MPE-RJ e MPF.” (grifos originais)

 

 

Diante de todo o exposto, conclui-se, portanto, que o ato praticado pelo Réu, qual seja, a requalificação da OSS Unir Saúde deu-se em clara e total afronta às noções de dignidade, honra e decoro, ou seja, em completa inobservância ao imperativo da probidade. Afinal, no exercício da função pública, não se pode agir para proteger ou prejudicar, deliberadamente, interesses privados, particulares ou específicos, em detrimento do elevado interesse público.

 

5. Segundo Eixo da Acusação: contratação da OSS IABAS

Em relação ao segundo eixo da acusação, qual seja, a contratação da OSS IABAS, os denunciantes afirmam haver robustos indícios de participação do Réu na prática de atos ilícitos referentes à celebração do contrato milionário, no valor total de R$835.772.409,78 (oitocentos e trinta e cinco milhões setecentos e setenta e dois mil quatrocentos e nove reais e setenta e setenta e oito centavos).

A citada contratação, que ocorreu em caráter emergencial e sem qualquer tipo de seleção pública ou licitação, tinha como objetivo a montagem de 7 (sete) hospitais de campanha no estado, na esfera pública, de modo a possibilitar o aumento de 1.800 (mil e oitocentos) leitos, aqui incluídos os leitos intensivos, para serem disponibilizados à população fluminense, sendo essa uma das medidas anunciadas pelo Réu, ainda no mês de março de 2020. Pouco depois, chegou a ser anunciada uma oitava unidade, sem contar, como já mencionado anteriormente, a unidade que seria erguida sob a responsabilidade do setor privado, que estava fora do escopo do contrato.

O Relatório Final da Comissão Especial constituída na ALERJ para investigar as contratações emergenciais na área de saúde, no contexto da pandemia, revela que, no caso da contratação da OSS IABAS, não se constatou: a) justificativa pertinente para a escolha dessa entidade; b) estudo preliminar para fundamentar a contratação; c) especificação mínima de quantitativos referentes aos itens contratados; d) devido zelo na antecipação de pagamento sem garantias suficientes para a administração pública, entre outros aspectos temerários (ALERJ, Comissão Especial COVID-19. Relatório Final, 2020, p. 69).  

Dos hospitais de campanha prometidos, apenas 2 (dois) foram entregues (Maracanã e São Gonçalo), mesmo assim, depois de considerável atraso no cronograma de montagem e com número reduzido de leitos, muito aquém do alardeado, como já foi mencionado na seção anterior.

Já vimos que, tão logo a pandemia se abateu sobre a população fluminense, o quadro de inépcia na gestão da crise, por parte da administração estadual, foi ficando delineado. Já vimos, também, que, além dos problemas gerenciais, rumores, suspeitas e indícios de irregularidades ganharam corpo, o que despertou o interesse investigativo de diferentes órgãos de controle do Estado.

O Réu, em sua defesa técnica, apresentada a este Tribunal Especial Misto, alega:  (a) que está dada a inexistência de provas ou indícios de sua participação na contratação da OSS IABAS, imputando tais responsabilidades ao então Secretário de Estado de Saúde, senhor Edmar José Alves dos Santos, e a seu Subsecretário Executivo, senhor Gabriell Carvalho Neves Franco dos Santos; (b) que, após noticiada pela imprensa a existência de superfaturamento na contratação da citada entidade, determinou à Controladoria Geral do Estado (CGE) que procedesse a auditoria prévia em todas as contratações emergenciais, o que fez por meio da edição do Decreto Estadual n° 47.039, de 17 de abril de 2020.

É necessário fazer alguns destaques sobre atores importantes para a elucidação das questões inerentes à contratação da OSS IABAS e sobre a existência de um grande esquema de desvio de dinheiro público e pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos, durante a gestão do Réu.

Como já vimos, o empresário Edson Torres teve participação destacada na indicação de Edmar José Alves dos Santos para o cargo de Secretário de Estado de Saúde, com a anuência do Pastor Everaldo, presidente nacional do Partido Social Cristão (PSC), junto a quem o empresário gozava de grande influência.

Pastor Everaldo, por sua vez, além de político conhecido no cenário fluminense e presidente nacional do PSC, partido pelo qual se elegeu Wilson Witzel, exercia, como já afirmamos, grande influência na gestão estadual, em diferentes áreas.

Gabriell Carvalho Neves Franco dos Santos foi a pessoa escolhida pelo Pastor Everaldo para ocupar o cargo de Subsecretário Executivo da Secretaria de Estado de Saúde. Tal decisão foi comunicada ao então Secretário de Estado de Saúde Edmar Santos pelo empresário Edson Torres. O Secretário, à época, não rejeitou a indicação e delegou ao novo subsecretário executivo o poder de efetuar contratações e ordenar despesas do órgão.

Sobre suas relações com a dupla Pastor Everaldo/Edson Torres, Edmar Santos, em seu depoimento prestado à Procuradoria Geral da República no Rio de Janeiro, em 24 de junho de 2020, discorreu com clareza meridiana:

“(...)Que passada a eleição e tendo sido eleito, no período de transição, o colaborador recebeu ligação por voz por Whatsapp de EDSON TORRES; Que EDSON disse que o futuro cargo de Secretário de Saúde estava entre o colaborador e FERNANDO FERRY; Que o colaborador é convidado por EDSON para um café da manhã no Hotel Hilton na Barra da Tijuca, em novembro de 2018, estando presentes apenas o colaborador e EDSON; Que na ocasião EDSON afirmou que era "sócio" do PSC junto com o Pastor Everaldo; Que ambos se consideravam "proprietários" do partido; Que, por conta disso, EDSON afirmou que não tinha interesse que FERNANDO FERRY assumisse a Secretária de Saúde pois este tinha ligação com o Deputado Estadual Rodrigo Amorim que é do PSL; Que a procura por outro nome tinha como objetivo emplacar um nome do PSC ao cargo; Que o colaborador percebeu essa primeira reunião como uma mera sondagem, não havendo qualquer tratativa sobre negócios ilícitos; Que, após uma semana, o colaborador liga para EDSON por Whatsapp para saber notícias e EDSON o convida para uma segunda reunião no mesmo hotel HILTON; Que os termos da conversa são os mesmos; Que não há nenhuma tratativa de vantagens ilícitas, mas o nome do colaborador é chancelado por EDSON para ser o nome indicado pelo partido ao cargo; Que até então não conhecia o Pastor Everaldo; Que é marcada, então, reunião na FIRJAN, onde funcionava o gabinete de transição do Governador no Centro do Rio de Janeiro; (...) Que esta primeira reunião com WITZEL foi muito atípica; Que WITZEL conversou apenas por 15 minutos com o colaborador. falando sobre parcerias público-privadas e temas de seu interesse; Que o colaborador saiu da reunião achando que não seria o escolhido pois não foram feitas muitas perguntas a respeito do seu currículo, experiência ou visão a respeito das políticas públicas de saúde para o Estado; Que após dois ou três dias o colaborador recebe ligação de EDSON onde é marcada nova reunião com o governador no prédio da FIRJAN; Que EDSON servia como um intermediário do PASTOR EVERALDO; Que nessa segunda reunião o colaborador conversa de maneira detida com WILSON WITZEL, por duas a três horas; Que o discurso do governador neste momento é no sentido de afastar os grupos corruptos dentro da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro; Que o colaborador chegou a pedir segurança para si e família país temia pela sua vida ao mexer com os grupos que estavam infiltrados na Secretaria de Estado de Saúde; Que nesta reunião não houve qualquer ajuste de vantagem indevida com o Governador; Que, após certo tempo, em novembro de 2018, o colaborador é indicado como futuro secretário de saúde; (...)” (grifos nossos)

 

Com relação à nomeação do ex-Subsecretário Executivo da pasta da Saúde, Grabriell Neves, ainda em seu depoimento à PGR, Edmar Santos esclarece:

“(...) Que, ao longo de sua estadia à frente da Secretaria de Estado de Saúde, a tensão com o grupo do PASTOR EVERALDO foi crescendo e, a partir de outubro de 2019, começou a haver pressão para troca subsecretária executiva MARIA THEREZA LOPES; Que o colaborador chegou a entender que havia ameaças veladas à DARIA THEREZA, com expressões como "ela está muito velhinha, pode falecer a qualquer momento"; Que as pressões começaram a crescer e vários nomes foram sendo sugeridos para ocupar o cargo; Que, à época, a indicação do nome de GABRIELL NEVES não pareceu  ao colaborador uma má indicação num primeiro momento pois o mesmo possuía experiência na área, sendo subsecretário na pasta de Ciência e Tecnologia; Que, em janeiro de 2020, o colaborador foi chamado à sede do PSC e o PASTOR EVERALDO comunicou que o novo Subsecretário Executivo da Secretaria de Saúde seria, de fato, GABRIELL NEVES; Que, a partir desse momento, o colaborador começou a suspeitar do motivo pelo qual GABRIELL tinha sido escolhido pelo PASTOR EVERALDO; Que havia um processo de compliance na Casa Civil que fazia uma avaliação da vida pregressa do futuro subsecretário; Que, desta forma, a escolha não era exclusiva do Secretário passando pelo aval de outras pastas (Casa Civil e Governador); Que o colaborador entende que a nomeação de GABRIELL teria como objetivo deixa-lo como "rainha da Inglaterra". (grifos nossos)

 

Quanto à proximidade e à existência de uma relação de amizade entre o Pastor Everaldo e o empresário Edson Torres, em seu depoimento prestado à PGR, em 03 de setembro de 2020, o empresário assevera:

“(...)Que no início da década de 90 o depoente começou a gerir a Dinâmica Segurança, da qual detinha 50% de propriedade; Que geria a Dinâmica. mas mantinha-se como diretor das demais empresas; Que a empresa já possuía diversos contratos com o setor público e na campanha para o Governo do Estado do Rio de Janeiro de 1994 o depoente chegou a visitar tanto MARCO AURÉLIO ALENCAR quanto representantes da campanha de MARCELO ALENCAR; Que forneceu cerca de 40 veículos para a campanha de GAROTINHO a pedido de AUGUSTO ARISTON; (...) Que na mesma eleição, registra que conheceu PASTOR EVERALDO, num encontro promovido com evangélicos e a candidata ao Senado Benedita;(...) Que após o Governo de MARCELO ALLENCAR. o depoente passou a estreitar suas relações com o PASTOR EVERALDO;(...) Que registra que EVERALDO sempre teve negócios no ramo imobiliário; Que, em 2003, EVERALDO ofereceu ao depoente a compra da empresa BRM ENGENHARIA E CONSULTORIA; Que nessa época EVERALDO colocou seu filho LAÉRCIO para cuidar da empresa; Que o depoente comprou três ou quatro terrenos no Recreio dos Bandeirantes para fazer incorporações; Que Foram feitos três prédios. mas a empresa não teve sucesso: Que o plano original era utilizar os apartamentos para aluguel, mas todos os apartamentos acabaram sendo vendidos; Que EVERALDO saiu da empresa após dois anos; (...)” (grifos nossos)

 

 

Já com relação ao Pastor Everaldo, se manifestou Edmar Santos em seu depoimento prestado à PGR, destacando sua proximidade com o Réu. A esse respeito, assim se expressou:

“(...) Que nesta reunião, além do governador eleito WILSON WITZEL, estavam o PASTOR EVERALDO, LUCAS TRISTÃO e CLEITON RODRIGUES; Que os citados eram pessoas de extrema confiança de WITZEL; (...)” (grifos nossos)

 

 

Também em seu depoimento prestado à PGR, o empresário Edson Torres discorreu sobre os primórdios da parceria entre Pastor Everaldo, o depoente e o Réu:

“(...)Que o declarante esteve pessoalmente com WITZEL em três oportunidades; Que, ao final de 2017 o declarante foi convidado por EVERALDO para participar de uma reunião com o Juiz Federal WILSON WITZEL; Que o propósito da reunião era conversar sobre a viabilidade política de WITZEL vir candidato a Governador do Estado do Rio de Janeiro pelo PSC: QUE WITZEL ainda não era filiado e nem poderia pois ainda era Juiz; Que tal reunião ocorreu na sede do PSC. Rua Senador Dantas, 71, 21° andar, presentes o declarante, EVERALDO, WITZEL e um empresário aposentado amigo do declarante VALDIR LOPES; Que nessa reunião WITZEL apresentou seu interesse em ser candidato ao Governo do Rio de Janeiro; Que nessa reunião. foram tratados apenas assuntos políticos e viabilidade; (...) QUE VICTOR HUGO possuía também interlocução de PASTOR EVERALDO para influenciar no governo WITZEL; (...)” (grifos nossos)

 

Ainda sobre a relação de proximidade existente entre o Governador afastado Wilson Witzel e o Pastor Everaldo, em depoimento prestado aos membros do Tribunal Especial Misto, se manifestaram as seguintes testemunhas: (a) Hormindo Bicudo Neto, ex-Controlador Geral do Estado do Rio de Janeiro durante a gestão de Wilson Witzel; (b) Lucas Tristão do Carmo, ex-Secretário de Desenvolvimento Econômico, Energia e Relações Internacionais; (c) Alex da Silva Bousquet, ex-Secretário de Estado de Saúde; (d) Edmar José Alves dos Santos, ex-Secretário de Estado de Saúde; (e) Edson da Silva Torres, empresário com forte atuação na saúde pública estadual; (f) Valter Alencar Pires Rebelo, advogado e político filiado ao PSC. Disseram eles:

  1. Hormindo Bicudo Neto:

“O SR. WALDECK CARNEIRO – Uma última pergunta, Presidente.

O senhor falou que tinha conhecimento da influência política do Pastor Everaldo tendo em vista que ele é o Presidente Nacional do Partido do Governador? O senhor também tinha informações sobre a influência do Pastor Everaldo na gestão de áreas do Governo: Detran, Cedae, Saúde...

 O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Ouvi falar, ouvi falar, né, que ele também tinha na Cedae. No Departamento de Trânsito, já não sei dizer para o senhor. Mas na Cedae ouvi falar também que ele tinha interferência lá, sim: que o Dr. Hélio era uma indicação dele.”

 

  1. Lucas Tristão do Carmo:

“O SR. ALEXANDRE FREITAS – Sr. Lucas Tristão, qual sua relação com o pastor Everaldo?

O SR. LUCAS TRISTÃO DO CARMO – A minha relação com o pastor Everaldo, ela ficou muito ruim desde um período ali na campanha. Desde então, a gente sempre se tratou institucionalmente. Ele era o Presidente do partido do Governador, eu era um Secretário de Estado do Governo Wilson Witzel e nosso relacionamento sempre foi ali institucional.”

 

  1. Alex da Silva Bousquet:

O SR. WALDECK CARNEIRO – Entendi. O senhor afirmou também que se encontrou uma única vez com o Pastor Everaldo no Palácio Guanabara.

O SR. ALEX DA SILVA BOUSQUET – Isso.

O SR. WALDECK CARNEIRO – Foi alguma reunião específica? 

O SR. ALEX DA SILVA BOUSQUET – Não foi reunião específica, foi encontro de corredor.

 

 

  1. Edmar José Alves dos Santos:

“O SR. WILSON JOSÉ WITZEL – Não houve facilitação de indicação de OS etc.? O senhor participou de alguma reunião?

 O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS – Participei de

algumas reuniões com o pastor Everaldo e com o Edson Torres e com o Vitor, que eu não lembro o sobrenome.

 (...)

 O SR. WILSON JOSÉ WITZEL - E o senhor se lembra da resposta que eu dei ao senhor?

 O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS - O senhor me deu uma primeira resposta.

 O SR. WILSON JOSÉ WITZEL - Qual foi a resposta que eu dei para o senhor?

 O SR. EDMAR JOSÉ ALVES DOS SANTOS - Que o senhor ia conversar com o pastor Everaldo sobre isso. (...)”

 

  1. Edson da Silva Torres:

“O SR. CARLOS MACEDO – Muito bem. Eu faço uma outra pergunta. Dessa forma, o pastor Everaldo, ele é o longa manus do Governador Wilson Witzel ou foi o longa manus do Governador Wilson Witzel?

 O SR. EDSON DA SILVA TORRES – Me perdoe. Eu queria que o senhor falasse em português. Eu não entendo essa palavra “longa manus”.

O SR. CARLOS MACEDO – Muito bem. Seria uma mão executora de uma ordem superior, ou seja, um braço que não faz parte do mesmo corpo, mas atende a um comando cerebral extinto ali ou independente daquele corpo.

O SR. EDSON DA SILVA TORRES – Sim.”

 

“O SR. ALEXANDRE FREITAS – Perfeito. O senhor tem alguma dúvida de que o pastor Everaldo era o operador financeiro do já Governador Wilson Witzel em questão de favorecimentos em contratos do Estado?

 O SR. EDSON DA SILVA TORRES – Não.

 

  1.  Valter Alencar Pires Rebelo

O SR. FERNANDO FOCH DE LEMOS ARIGONY DA SILVA – Depois de eleito o Governador tinha contato com o Pastor Everaldo, assim, no Palácio, contatos com certa frequência?

O SR. VALTER ALENCAR PIRES REBELO – Sem dúvida.

Em algumas oportunidades eu pude observar em algumas reuniões a presença do Pastor que, para mim, conduzia assuntos partidários. Eu nunca participei dessas reuniões, mas o via em algumas oportunidades no palácio.

 

 

Importa destacar que, sobre o livre trânsito do Pastor Everaldo no Palácio Guanabara, sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro, o próprio Wilson Witzel confirmou esse fato em seu interrogatório no Tribunal Especial Misto:

(...)

O SR. WALDECK CARNEIRO – Pastor Everaldo?

O SR. WILSON JOSÉ WITZEL – Diversas vezes, Presidente do partido. Foram várias... Inclusive, várias das Atas de entrada e saída do Palácio Laranjeiras constavam o Márcio Pacheco, o Claudio Castro, o Sandro, membros da executiva estadual do partido para tratar das eleições de 2020. Eu, como Governador e Presidente de honra do partido, opinei, não só nas eleições do Rio de Janeiro, mas do Brasil inteiro. Eu estive em São Luiz do Maranhão para acompanhar as prévias para a eleição no Maranhão, filiando Prefeito; no dia da minha defesa de tese de doutorado eu estava em São Luiz fazendo campanha – na verdade, fazendo campanha de filiação. Então, eu, como Presidente de honra do partido, viajei o Brasil com o Pastor Everaldo, com Deputados Federais do meu partido no Tocantins, na Bahia, e no Rio de Janeiro não era diferente. Foram várias reuniões realizadas com a executiva do partido para definir sobre eleições. A reunião era eminentemente política.

 

São necessários tais esclarecimentos quanto ao networking entre essas pessoas para possibilitar o enfrentamento do mérito quanto à influência do Governador afastado Wilson Witzel na contratação da OSS IABAS.

Isto posto, em sua defesa apresentada ao Tribunal Especial Misto, o Réu aduz não existir quaisquer indícios de sua participação na contratação da OSS IABAS. Contudo, na contramão de sua afirmação, em depoimento prestado à Procuradoria Geral da República no Rio de Janeiro, o ex-Secretário de Estado de Saúde, senhor Edmar Santos, declarou ter sofrido pressões vindas do Réu e de terceiros para a montagem dos hospitais de campanha, nos mesmos moldes dos contratados pelo Estado de São Paulo.

Apesar do estudo realizado por sua equipe, que apontava outras medidas, o então Secretário de Estado de Saúde foi informado pelo então Subsecretário Executivo de sua pasta, senhor Gabriell Neves, que a OSS IABAS seria a organização social encarregada de construir e gerir hospitais de campanha, sendo ele, o subsecretário, o gestor responsável por decidir sobre a contratação:

QUE, com o avanço da pandemia, porém, o Estado de SP decidiu montar hospitais de campanha e o colaborador voltou a conversar com BERTHOLDO, mas não definiu que seria o IABAS o contratado; QUE o governador WITZEL e a primeira-dama HELENA começaram a pressionar o colaborador para a montagem de hospitais de campanha, já que as cobranças na média aumentaram; QUE o colaborador voltou a projetar com sua equipe a montagem de hospitais de campanha, em modelos diferentes do de SP, seguindo um racional técnico; QUE quem bateu o martelo para a contratação do IABAS não foi o colaborador; QUE o colaborador recebeu de GABRIELL NEVES a notícia de que seria o IABAS a OS contratada; QUE o colaborador acreditou que essa escolha havia sido deliberada pelo grupo do PASTOR EVERALDO, já que o IABAS já tinha uma relação com o grupo;(..) QUE o novo contrato, porém, não solucionou alguns vícios como a ausência de prazo para entrega dos hospitais e a falta de exigência de documentos; QUE o contrato foi assinado mesmo com esses vícios, o que causou espanto no colaborador, pois sacramentou uma mudança drástica na postura do Estado com o IABAS, que começou bastante severa e terminou demasiadamente flexível; (...)” (grifos nossos)

 

 

Importa ainda destacar, sobre a contratação da OSS IABAS, que o Pastor Everaldo, segundo depoimento de Edmar Santos, deixava claro que nada acontecia na Secretaria de Estado de Saúde sem que o Governador soubesse, seja com antecedência ou mesmo no transcurso das ações, ressalvando que seu grupo tinha carta branca para atuar:

“QUE o PASTOR EVERALDO já disse mais de uma vez ao colaborador que todas as questões que passavam pelo grupo tinham carta branca do governador WILSON WITZEL, que às vezes sabia antes e às vezes era informado ao longo do processo;(...)” (grifos nossos)

 

Como se vê, segundo o delator, o Pastor Everaldo declarou que as ações de seu grupo político tinham o aval do Governador, ou seja, o Réu tinha conhecimento sobre as mesmas. Em depoimento ao Tribunal Especial Misto, outros agentes públicos que integraram a equipe do Governo do Estado, durante a gestão do Réu, se manifestaram, dando a entender que o governador afastado era sabedor do que se passava em sua administração. É o caso do ex-Controlador Geral do Estado do Rio de Janeiro, senhor Hormindo Bicudo, que alertou o chefe do Poder Executivo, não apenas sobre a má fama, mas também sobre o valor astronômico da contratação da OSS IABAS. Segue sua declaração a esse respeito, em diálogo com a Acusação:

“O SR. LUIZ PAULO – Que é um dos eixos aqui da nossa investigação.

O senhor é um homem de controle, há muitos anos, segundo a sua experiência, vai a três décadas.  A Iabas havia sido desqualificada do Município do Rio de Janeiro no Governo de Marcelo Crivella e desqualificada por uma bagunça que ela vez lá, a bagunça era tão grande que tem uma Deputada que dizia que ela não era nem Iabas, era “Diabas”.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Eu me lembro disso.

O SR. LUIZ PAULO – Você vê como ela é conhecida, e ela foi convidada por alguém para construir, construir obra de engenharia e gerenciar serviços médicos...

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Isso mesmo.

O SR. LUIZ PAULO – Serviços incompatíveis.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Totalmente.

O SR. LUIZ PAULO – Que só faz aumentar o valor do contrato.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – E numa dimensão absurda.

O SR. LUIZ PAULO – Porque vai pagar um sobre preço sobre as obras de engenharia.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Exatamente.

O SR. LUIZ PAULO - Quem vai pagar?  O Estado.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Perfeito.

O SR. LUIZ PAULO – Claro, o senhor vai investigar isso, é claro que isso salta aos seus olhos.  Veio à tona algum dado de realidade para o senhor de quem teria colocado essa Iabas para fazer esse serviço?

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Deputado, quando eu fiquei sabendo da dimensão dessa contratação, né?

O SR. LUIZ PAULO - Mais de 800 milhões.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Na época era 850...

O SR. LUIZ PAULO - Pois é, mais de 800...

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Com 10 hospitais de campanha, que não é hospital simples, é um hospital... Hospital mesmo, porque hospital de campanha não é um piso, um ar condicionado, é um universo muito pesado, é uma responsabilidade muito grande e eu fiquei bem assustado como tudo aconteceu, sem planejamento nenhum, umas planilhas de orçamento totalmente equivocadas, o que sofreu uma ação nossa direta junto com a Procuradoria do Estado.

Numa primeira medida, nós reduzimos em mais de 150 milhões aquele contrato e me surpreendeu também por ser o Iabas porque ele aparece no nosso relatório e não aparece muito bem no nosso relatório de auditoria, aparece com deficiências graves e isso me surpreendei profundamente, alertei todo setor, alertei o Secretário Edmar também por que dessa escolha, essa informação nunca me veio...

O SR. LUIZ PAULO - O senhor alertou o Governador também?

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Alertei o Governador também, ele criou uma comissão na época, se eu não me engano, até a pedido com o Vice-Governador participando, eu participei dessas reuniões, de vez em quando porque a situação também ficou insustentável, Deputado, porque nós estávamos com a pandemia acontecendo, a proliferação do vírus estava enorme, os hospitais já tinham iniciado a construção com esse instituto escolhido pela Saúde dessa forma equivocada, mas, também parar aquilo poderia correr um risco ainda maior de começar tudo do zero e as pessoas sendo contaminadas à velocidade do que estava, então, isso deu um medo em todo mundo, deu medo na PGE, deu medo na CGE, deu medo na Assembleia, deu medo em todo mundo.

O SR. LUIZ PAULO – Era para ter medo mesmo.

O SR. HORMINDO BICUDO NETO – Era para ter medo mesmo.  E, felizmente ou infelizmente, nós tivemos que continuar com o Iabas naquele primeiro momento, reduzimos o contrato, modificamos algumas cláusulas deles que, inclusive, cláusula de despesa de capital reverteriam em favor do Estado, ou seja, aquele dinheiro que foi pago a eles teria voltado para a gente, mas, eu confesso ao senhor que foi uma decisão horrível, lamentável e que de falta de planejamento mesmo, porque nem a projeção de 10 hospitais eu assumiria como gestor porque eu nem vi ainda o tamanho do vírus, a expansão dele.

Eu já projetar dez, assim, de primeira linha, foi meio pesado. Eu achei muito exagerado. (...)”

 

Ainda sobre a má fama da OSS IABAS e os riscos envolvidos em sua contratação, outra ex-integrante do Governo do Estado do Rio de Janeiro na gestão Wilson Witzel, senhora Mariana Scardua, declarou ter avisado seu superior hierárquico, o Secretário de Estado de Saúde, sobre aqueles aspectos e, em consequência disso, teria sido exonerada do cargo que ocupava. Afirmou a depoente à Acusação:

O SR. LUIZ PAULO - E relatava para ele que a Organização Social Iabas tinha avaliação de 96% de conceito C na gestão do Hospital Adão Pereira Nunes, que ela tinha sido desqualificada no Município da Capital, que ela estava inscrita na dívida ativa do Município da Capital, que ela teve um dirigente preso e estava sendo investigada pelo próprio Ministério Público, então, perguntei a ele se ele alertou o Secretário ou alguém do Governo sobre tudo isso que pesava sobre a Iabas, visto que ela foi escolhida para tocar um contrato de construção e gestão de hospitais de campanha de mais de oitocentos milhões  de reais. A senhora tinha conhecimento de todos esses fatos que eu relatei aqui?

A SRA. MARIANA TOMASI SCARDUA – Sim.

O SR. LUIZ PAULO – E a senhora relatou para o Sr. Edmar?

A SRA. MARIANA TOMASI SCARDUA – Então, com relação ao contrato de gestão do Hospital Adão Pereira Nunes, eu repito aqui que tem um parecer meu ratificando pela não renovação deste contrato, encaminhando para as subsecretarias e para o Secretário competente, para as sanções devidas e não renovação.

Com relação ao hospital de campanha, quando eu fiquei sabendo...

O SR. LUIZ PAULO – Mas a Iabas, especificamente.

A SRA. MARIANA TOMASI SCARDUA – Sim, a Iabas, Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, gerido pela Iabas, só tinha conceito C e uma prestação de contas muito frágil. Após avaliar os relatórios da comissão de fiscalização, ratifiquei o parecer da CAF pela não renovação, não renovação deste contrato, pela troca da Organização Social, porque o Iabas não entregava o que estava em contrato. Essa foi uma das ações.

A outra, como eu disse aqui, eu ficava sabendo, também já falei isso na Alerj e no MPE, eu ficava sabendo das ações da secretaria de estado pela televisão, às sete da manhã, quando o Secretário entrava no ar. E por aí eu fiquei sabendo que teriam hospitais de campanha, depois eu fiquei sabendo que os hospitais de campanha seriam todos com o Iabas. Aí, eu cheguei a comentar com ele que era... a palavra certa, não sei como dizer, mas que era imprudente, perigoso, porque o Iabas já tinha um histórico de não entregar, e ele tinha conhecimento disso. Aí, sei lá, um dia depois, dois dias depois, eu fui exonerada.

 

Novamente ao ser questionada sobre a contratação da OSS IABAS, desta vez pela Deputada Dani Monteiro, Mariana Scardua afirma ter avisado sobre os riscos da contratação daquela entidade ao Subsecretário Executivo (Gabriell Neves) e ao Secretário de Estado de Saúde (Edmar Santos). Eis o excerto de seu depoimento com esse teor:

A SRA. DANI MONTEIRO – Ao encontrar algumas inconformidades, falhas ou faltas, nas palavras da senhora, que em geral são irregularidades na gestão dos contratos, a quem a senhora deveria se reportar?

A SRA. MARIANA TOMASI SCARDUA – Então, eu não sei se alguma testemunha já falou, mas a Comissão de Acompanhamento e Fiscalização do Contrato de Gestão, pelo decreto, é subordinada ao Secretário de Estado de Saúde e ela se reporta aos superintendentes e aos Subsecretários, para dar ciência desse acompanhamento.

 Então, quando eu tive, por exemplo... quando você tem ciência de alguma prestação de serviço que não está em conformidade com o contrato, a primeira ação, por exemplo, da área técnica, é notificar, por ofício, pedindo para corrigir. E aí, a gente comunica aos órgãos competentes. Então, assim, quando era alguma coisa que não era conduzida, a gente tinha que comunicar à SubCIC, à Subsecretaria de Controle Interno e Compliance. A CAF direcionava os relatórios também para a Subsecretaria de Controle Interno e Compliance.

 Então, por exemplo, no caso do Iabas, que é um caso emblemático, quando a CAF encaminha o relatório para a Superintendência de Acompanhamento de Contrato de Gestão, encaminha para a Subsecretaria de Gestão da Atenção Integral, eu fiz questão – era um caso muito grave -, então, eu fiz questão de informar todos os setores competentes: a Subsecretaria Executiva; ao Secretário de Saúde.

Eu não me lembro se eu cheguei a avisar a Subsecretaria Geral ou não, mas ela não tem competência também nesse ramo, mas é importante talvez saber. E, por fim, acho que também a gente informou à Subsecretaria Jurídica ou pediu posterior encaminhamento. Mas a Subsecretaria de Controle Interno e Compliance; o Secretário de Estado e a Subsecretaria Executiva, que são os três diretamente interessados, eles foram comunicados pela Subsecretaria de Gestão da Atenção Integral à Saúde, assim como foram comunicados pela CAF.

A SRA. DANI MONTEIRO – Mariana, conforme as suas declarações aqui, a falta de transparência motivou o pedido da sua exoneração em fevereiro de 2020. Correto?

A SRA. MARIANA TOMASI SCARDUA – Sim. A falta de transparência da Subsecretaria Executiva com relação à execução financeira dos contratos e à execução financeira e orçamentária dos contratos e à assinatura dos novos contratos e lançamento de novos editais.

 

Em sua defesa, o Réu afirmou que ordenar despesas não faz parte das atribuições do cargo para o qual foi eleito, mas sim o acompanhamento de políticas públicas estrategicamente elaboradas, conforme seu plano de governo e promessas de campanha.

Ainda em sua defesa, diz ter implantado o Sistema Eletrônico de Informações (SEI), desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com vistas à garantia do acesso às informações sobre contratos e contratações em curso, de modo a fortalecer a transparência das ações governamentais.

Foi exatamente nesse sentido que o Réu se manifestou em seu interrogatório, em resposta ao Desembargador Fernando Foch:

“O SR. FERNANDO FOCH DE LEMOS ARIGONY DA SILVA – Eu não sei se estou bem lembrado, mas acredito que não. Acredito ter ouvido de V. Exa. na campanha eleitoral que governaria desconfiando. Ou seja, fiscalizando todos os seus Secretários. Essa... eu estou enganado ou isso foi dito em campanha, Governador?

O SR. WILSON JOSÉ WITZEL – Desembargador, durante a campanha eleitoral, eu fiz várias afirmações de compromisso com a transparência. Tanto que ao assumir o Governo do Estado eu implantei o SEI que foi feito um acordo com o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tem o mais moderno sistema de processamento eletrônico não só administrativo, mas judicial, o e-PROC e o SEI. Fizemos um convênio com o TRF da 4ª Região e implantamos o SEI no Governo do Estado. Para dar total transparência às licitações, aos processos administrativos. Da minha parte, sempre nós nos comportamos de forma transparente. Em relação aos Secretários, a orientação sempre foi nesse sentido. Agora, eu não tenho como controlar efetivamente o que o Secretário faz - com quem ele janta, com quem ele sai. Não é possível isso. São mais de 20 Secretários, são Subsecretários. É difícil. Não é possível controlar.”

 

Ocorre que todas as promessas e o declarado cuidado com a transparência, em processos administrativos e licitações realizadas pelo Poder Executivo, não foram suficientes para impedir a falta de limpidez na rumorosa contratação da OSS IABAS.

É relevante destacar que a cifra do contrato para montagem e gestão dos hospitais de campanha no estado do Rio de Janeiro, qual seja, o valor exato de R$835.772.409,78 (oitocentos e trinta e cinco milhões setecentos e setenta e dois mil quatrocentos e nove reais e setenta e oito centavos), representa mais de 10% (dez por cento) do orçamento previsto para a Saúde Estadual no ano de 2020, conforme consta na Lei Orçamentária Anual daquele ano, que consignava o montante de R$ 7.075.545.394,00 (sete bilhões setenta e cinco milhões quinhentos e quarenta e cinco mil trezentos e noventa e quatro reais) [21] para o setor. Trata-se da maior contratação feita pela administração estadual, com uma única empresa, em todas as áreas, no ano de 2020. Provavelmente, uma das maiores contratações da história recente da administração pública estadual do Rio de Janeiro.

Com relação ao fato de ser o senhor Grabriell Neves, Subsecretário Executivo da Secretaria de Estado de Saúde, o responsável por ordenar despesas daquela pasta, isso em nada exclui a responsabilidade do Réu, posto que era seu dever zelar pela boa conduta de seus subordinados, mormente quando estão investidos de responsabilidades estratégicas. Voltaremos às questões “estratégicas” mais adiante.

Se os Secretários de Estado e Subsecretários exercem cargos de confiança e são orientados a praticar atos que lhes são delegados, direta ou indiretamente, pelo governador, este deve responder, não apenas pela escolha do subordinado, mas também pelo dever de supervisionar diretamente os atos praticados por seus escolhidos.

Com relação ao fato de que, após noticiada pela imprensa a existência de superfaturamento na contratação da OSS IABAS, o Réu determinou que a Controladoria Geral do Estado (CGE) fizesse auditoria prévia em todas as contratações emergenciais, cabe ressaltar que, conforme consta das Alegações Finais da Acusação:

“A IABAS, tinha 96% de avaliação de desempenho semestral em conceito “C”, no contrato 03/2016, para gestão do HEAPN. Tal conceito representa o mais crítico desempenho e, mesmo assim, a IABAS foi selecionada pelo comando da área da Saúde estadual, com intenção não republicana, para implantar e gerir 7(sete) Hospitais de Campanha e que, ainda, tinha sido desqualificada no Município do Rio de Janeiro por gestão precária, que tinha sido investigada pelo MPE e que teve dirigente da mesma preso. E que, também, estava inscrita na dívida ativa do Município da Capital. O aparato institucional do Estado nada verificou, mesmo se tratando de um contrato de tal dimensão.”

 

Cabe repetir que essa péssima reputação e avaliação foi também notificada ao ex-Secretário de Estado de Saúde e ao seu Subsecretário Executivo, pela Senhora Mariana Scardua, que também exercia cargo de Subsecretária naquela pasta:

“A SRA. MARIANA TOMASI SCARDUA – Sim, a Iabas, Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, gerido pela Iabas, só tinha conceito C e uma prestação de contas muito frágil. Após avaliar os relatórios da comissão de fiscalização, ratifiquei o parecer da CAF pela não renovação, não renovação deste contrato, pela troca da Organização Social, porque o Iabas não entregava o que estava em contrato. Essa foi uma das ações.

 A outra, como eu disse aqui, eu ficava sabendo, também já falei isso na Alerj e no MPE, eu ficava sabendo das ações da secretaria de estado pela televisão, às sete da manhã, quando o Secretário entrava no ar. E por aí eu fiquei sabendo que teriam hospitais de campanha, depois eu fiquei sabendo que os hospitais de campanha seriam todos com o Iabas. Aí, eu cheguei a comentar com ele que era... a palavra certa, não sei como dizer, mas que era imprudente, perigoso, porque o Iabas já tinha um histórico de não entregar, e ele tinha conhecimento disso. Aí, sei lá, um dia depois, dois dias depois, eu fui exonerada.”

 

Como se pode observar, a má fama da OSS IABAS era amplamente conhecida entre gestores graduados da equipe do Réu. Apesar disso, foi a organização social escolhida para prestar o serviço de montagem e de gestão dos hospitais de campanha. Ademais, não obstante a publicação do Decreto Estadual n° 47.039, de 17 de abril de 2020, que determinava a realização de auditoria nos contratos emergenciais realizados pela Secretaria de Estado de Saúde no âmbito das ações de enfrentamento à pandemia do coronavírus, aquela famigerada organização social foi afastada apenas no mês de junho de 2020, após a publicação do Decreto Estadual n° 47.103, de 02 de junho de 2020, sob pressão da imprensa e depois de desembolsados valores expressivos pelo erário.

Isso por certo ocorreu pelo fato de que a OSS IABAS tem estreita ligação com o grupo liderado pelo Pastor Everaldo, cujo principal operador executivo, nos meses de fevereiro e março de 2020, no âmbito da SES, era Gabriell Neves, que respondia pelas contratações no órgão.

Nesse sentido, destacou a Acusação, em suas Alegações Finais:

Para robustecer a acusação de que a contratação da IABAS foi escusa e se deu de forma irregular e improba através de uma organização criminosa na gestão do acusado de Crime de Responsabilidade, o GOVERNADOR WILSON WITZEL, é que se transcreve o abaixo:

No termo de colaboração do Sr. Edmar José Alves dos Santos, em sede de delação premiada ao MPF em 24/06/20, as fls. 2 e 3 de 5, no Anexo 14 – IABAS, afirma: “ QUE, por ser aliada ao grupo do PASTOR EVERALDO o IABAS alimentava o pool de empresas que contribuía com o caixa da propina (...)

QUE, em janeiro de 2020, BERTHOLDO conversa com o colaborador sobre a perspectiva da contratação de hospitais de campanha, para a pandemia que se aproximava, Que o colaborador não deu muita importância para essa conversa porque os hospitais de campanha não estavam em seus planos; Que, com o avanço da pandemia, porém, o Estado SP decidiu montar hospitais de campanha e o colaborador voltou a conversar com BERTHOLDO, mas não definiu que seria o IABAS o contratado; Que o governador WITZEL e a primeira-dama HELENA começaram a pressionar o colaborador para a montagem de hospitais de campanha, já que as cobranças na mídia aumentaram; Que o colaborador voltou a orientar com sua equipe a montagem de hospitais de campanha, em modelos diferentes de SP, seguindo um raciocínio técnico; QUE  quem bateu o martelo para a contratação do IABAS não foi o colaborador; QUE o colaborador recebeu de GABRIELL NEVES a notícia de que seria o IABAS a OS contratada; QUE o colaborador acreditou que essa escolha havia sido deliberada pelo grupo do PASTOR EVERALDO, já que o IABAS já tinha uma relação com o grupo; QUE, entretanto, o colaborador não teve a confirmação de VICTOR HUGO que essa decisão partiu do grupo; QUE PASTOR EVERALDO posteriormente informou ao colaborador que também não partiu dele essa decisão, mas é possível que tenha partido; Que VICTOR chegou a se queixar da interferência de CASSIO BARREIROS na relação com o IABAS; QUE  a interface do grupo do empresário JOSÉ CARLOS narrado em anexo próprio era feita por CASSIO BARREIROS, que foi chefe de gabinete da casa civil e posteriormente assessor especial do governador WITZEL (...)”

 

Isto posto, não resta qualquer dúvida de que o Réu, ao lado do Pastor Everaldo, tendo como operadores executivos Edmar Santos e, por dois meses, Gabriell Neves, estruturou esquema para destinar parcela significativa do orçamento da pasta da saúde estadual à efetivação de uma contratação temerária, mas aparentemente tentadora, em face do estratosférico valor do contrato.

Pelo exposto, conclui-se, portanto, que, no lapso temporal entre a contratação, a determinação de realização de auditoria e o efetivo afastamento da OSS IABAS, as ações ocorreram mediante comando, direto ou indireto, do Réu. Ainda que não haja sua assinatura no contrato; ainda que ele não tivesse executado uma ação direta para contratar a OSS IABAS, é inverossímil que não soubesse de nada do que se passava. Afinal, era a maior contratação de seu governo, com grande cobertura midiática e com incidência sobre o principal desafio do Rio de Janeiro, naquele momento e ainda hoje: salvar as vidas das pessoas infectadas pelo novo coronavírus. Ora, poderia o Réu, como governador, ficar absorto face a tudo isso?  

Na hipótese de que a resposta à questão acima seja afirmativa, o caso passa a ser de negligência, omissão, descuido ou desleixo. Como pode o Réu, como chefe do Poder Executivo estadual, não ter acompanhado, monitorado, se interessado mais de perto por um dossiê de gestão tão importante e tão decisivo para a vida do povo fluminense?

De uma forma ou de outra, por ação direta ou indireta, ou, ainda, pela mais absoluta omissão, não me parece cabível afastar a responsabilidade do Réu em relação à desastrosa contratação da OSS IABAS. Até porque, sua atitude de se manter sob alegada distância das decisões relativas à contratação da OSS IABAS foi determinante para que tudo acontecesse da forma como ocorreu. Seu distanciamento, omissão ou negligência, além de reprováveis por si mesmos, foram a senha para que gestores e empresários, em conluio, agissem ao arrepio do interesse público e da moralidade, de modo que o Réu pudesse vir a alegar, caso questionado, que não tivera participação nos fatos, pois estava focado nas “questões estratégicas”.

Mas, mesmo sob o prisma da responsabilidade estratégica, sempre brandida pelo Réu para justificar sua inimputabilidade sobre os fatos e responsabilidades que lhe são atribuídos, há uma questão devastadora: afinal, o que seria mais estratégico para o governador à época do que cuidar, com máximo zelo e irretocável integridade, da gestão da saúde, da execução de um contrato milionário, único na administração, em plena pandemia, com número ascendente de mortos e infectados no Rio de Janeiro? Havia algo mais estratégico naquela conjuntura?   

Outrossim, vale destacar que a definição de “improbidade” é motivo de acalorados debates doutrinários entre juristas. Parte dos autores entende que a probidade é dever máximo do agente público, mas outros doutrinadores preferem enfatizar que ela é, a rigor, um dos princípios basilares da Administração Pública. Mas essas vertentes, a rigor, não se colocam em contradição. Ambas as correntes são confluentes quanto ao dever legal e moral do agente público em servir à administração com honestidade, boa fé e zelo para com a res publica.

Nas lições da ilustríssima jurista Maria Sylvia Zanella di Pietro[22], a improbidade administrativa seria a lesão à probidade e à moralidade administrativa, acrescentando ainda a autora que, quando tratada como infração, a improbidade ganha um sentido mais extenso e preciso, abarcando os atos imorais ou desonestos, como também os atos ilegais.

Como se percebe, em relação ao modo de agir compatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo de governador, impunha-se ao Réu o dever de atendimento a padrões éticos, tais como honestidade, lealdade, cuidado, boa fé e probidade.

É no mínimo curioso, além de improvável, que o governador afastado não tivesse conhecimento da contratação da OSS IABAS para montagem e gestão dos hospitais de campanha, assim como também é curioso, além de inverossímil, que o Réu não tenha acompanhado o andamento do processo administrativo e a execução desses serviços.

 Além de ter grande envergadura financeira, sendo possivelmente o contrato de valor mais alto da Secretária de Estado de Saúde e de todo o Poder Executivo estadual, também se tratava de medida estratégica para o enfrentamento da pandemia no estado do Rio de Janeiro. Sua omissão e negligência, no acompanhamento do processo de contratação da empresa ou organização social que realizaria a montagem e a gestão dos hospitais, certamente acabou por contribuir para que dezenas de milhares de cidadãos fluminenses fossem fatalmente vitimados pela covid-19, em decorrência da total ausência de infraestrutura na saúde estadual para o acolhimento das pessoas infectadas pelo novo coronavírus.

Segundo o Dicionário Michaelis[23], a omissão é definida como “abstenção de um ato ou de cumprimento de um dever legal; não realização de uma conduta (socorro, salvamento, intervenção etc.) que pode ou poderia gerar responsabilidade criminal, por causar dano moral ou patrimonial”; a negligência é definida como “(1) falta de vigilância; descuido, desídia, desleixo; (2) sentimento de que alguém ou alguma coisa não merece sua atenção ou respeito; desatenção, desinteresse, menosprezo; (3) falta de iniciativa; indolência, inércia, preguiça.”

Já à luz do ordenamento jurídico brasileiro, a omissão e a negligência do Réu, na qualidade de governador, caracterizam-se como descumprimento do poder-dever de agir e, diante das consequências colhidas pela sociedade fluminense, não há como afastar sua responsabilização. Nesse diapasão, sublinha o eminente jurista Hely Lopes Meirelles:

O poder administrativo, portanto, é atribuído à autoridade para remover os interesses particulares que se opõem ao interesse público. Nessas condições, o poder de agir se converte no dever de agir. Assim, se no Direito Privado o poder de agir é uma faculdade, no Direito Público é uma imposição, um dever para o agente que o detém, pois não se admite a omissão da autoridade diante de situações que exigem sua atuação. (“Direito Administrativo Brasileiro”, 2010, p.107)

 

Sobre a omissão e a negligência, nas palavras do saudoso jurista, professor de direito e magistrado, Dr. José de Aguiar Dias[24], podem ser conceituadas como:

“(...) omissão é a negligência, o esquecimento das regras de proceder, no desenvolvimento da atividade. Negligência é a omissão daquilo que razoavelmente se faz, ajustadas as condições emergentes às considerações que regem a conduta normal dos negócios humanos. É a inobservância das normas que nos ordenam operar com atenção, capacidade, solicitude e discernimento. A negligência ocorre na omissão das precauções exigidas pela salvaguarda do dever a que o agente é obrigado. Configura-se, principalmente, no fato de não advertir a terceiro do estado das coisas capaz de lhe acarretar prejuízo, de não providenciar a remoção de objeto que produza dano deixado em lugar público; na ignorância e no erro evitáveis, quando impedem o agente de conhecer o dever; isto é deixar de ouvir o que é audível, deixar de ver o que é visível.

 

Logo, a responsabilização do Réu pode, sim, decorrer de sua conduta omissiva e negligente no exercício de sua elevada função pública, de caráter executivo. Ou seja, apto a cuidar, resolver, agir, como se espera de qualquer pessoa que exerça o cargo de governador, o Réu, eleito para cumprir essa função, delega a terceiros, por ação ou omissão, sem supervisão ou acompanhamento, a tomada de decisões centrais de sua administração.

Como o próprio Réu ressaltou, não apenas em sua peça de defesa apresentada ao Tribunal Especial Misto, mas também em seu interrogatório, sua obrigação se restringia à tomada de “decisões estratégicas”. Ora, se a contratação milionária de um serviço de montagem e gerência de hospitais de campanha para atendimento da população fluminense, em meio a uma pandemia devastadora, não se tratava de decisão estratégica de seu governo, ninguém mais saberá definir o sentido do que seja estratégico.

Nessa perspectiva, também ensina o saudoso jurista Hely Lopes Meirelles[25]:

o agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o Honesto do Desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético da sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.” (grifos nossos)

 

Em outras palavras, é inaceitável que, diante do porte financeiro do contrato e da urgente necessidade de montagem de hospitais de campanha para atendimento à população fluminense, cada vez mais afetada pela pandemia, que o Réu, como chefe do Poder Executivo, não tenha se mantido informado sobre o processo de contratação da OSS IABAS e, menos ainda, sobre a execução do contrato. Aliás, sem sequer tirar proveito do inovador sistema que orgulhosamente implantou, o Sistema Eletrônico de Informações, que lhe possibilitaria, de seu próprio gabinete, acompanhar o andamento de todos os processos, notadamente monitorar o empenho, a liquidação e o pagamento relativos a serviços prestados ou a bens e insumos comprados.   

Mesmo em relação a supostas atitudes diligentes e zelosas reclamadas pelo Réu em sua defesa, como a edição do Decreto nº 47.103, de 02 de junho de 2020, que afastou a OSS IABAS da construção e da gestão dos fracassados hospitais de campanha, o referido ato só veio à luz depois que o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro exerceu seu poder de controle, determinando, em 27 de maio de 2020, a suspensão dos pagamentos à entidade, por suspeita de irregularidades, incluindo superfaturamento no contrato. Ou seja, o Réu afastou a OSS IABAS apenas poucos dias depois da decisão do TCE-RJ!

Também é importante destacar que o Réu tem atitude hesitante, quando se trata de responder sobre as decisões relativas à contratação da OSS IABAS. Embora, nas Alegações Finais, a Defesa afirme categoricamente que a decisão sobre a contratação da OSS IABAS tenha sido do Subsecretário Executivo Gabriell Neves, em resposta ao Relator, durante o seu interrogatório, o Réu foi menos firme. Indagado se a decisão tinha sido do Subsecretário Executivo, ele respondeu: “provavelmente”! Aliás, não se sabe bem em que momento a administração estadual, sob o comando do Réu, abandonou o “Plano de Resposta de Emergência ao Coronavírus no Estado do Rio de Janeiro”, de janeiro de 2020, que previa o aproveitamento das estruturas hospitalares das Forças Armadas e da própria Secretaria de Saúde, e se encaminhou para a contratação discricionária da OSS IABAS. Como governador à época, será mesmo honroso e digno que o Réu não tenha resposta precisa para nada disso?

Talvez a explicação esteja na resposta dada pelo Sr. Edson Torres, em diálogo com a Acusação, durante seu depoimento. Indagado se a OSS IABAS participava da caixinha de propina por ele assumidamente coordenada, no âmbito da Secretaria de Estado de Saúde, o depoente afirmou: “Inicialmente, não. (...) Depois, no início de 2020, por causa da pandemia, que Edmar trouxe um contrato fechado referente à pandemia, que, aí, colocou-se alguém para conversar com o IABAS sobre questão de participação de propina.”         

Nunca é demais lembrar dois dados assombrosos: no governo do Réu, o erário estadual pagou cerca de R$ 256 milhões antecipadamente à OSS IABAS para construir e gerenciar hospitais de campanha, iniciativa que se constituiu no mais retumbante fracasso de sua gestão. O dramático corolário dessa vultosa soma desperdiçada é o número de quase 44.000 mortos pela COVID-19 no Estado do Rio de Janeiro, que fecha o mês de abril de 2021 com quase 740.000 casos confirmados. Ambos os dados são do Consórcio de Veículos de Imprensa que monitora a pandemia no Brasil.

Em resposta à Desembargadora Inês da Trindade Chaves de Melo, o Réu afirmou, de forma eloquente, “que não é atribuição do governador verificar regularidade de pagamentos”. Pouco antes, porém, afirmara, respondendo ao Desembargador Fernando Foch, com orgulho, que havia implantado um moderno sistema de monitoramento de informações da gestão: “Para dar total transparência às licitações, aos processos administrativos. De minha parte, sempre nos comportamos de forma transparente.” Contudo, mesmo com dispositivo tão avançado, o Réu não sabe bem quem indicou o Subsecretário Executivo Gabriell Neves, não sabe bem quem contratou a OSS IABAS, não sabe bem quanto se pagou à entidade, pois, tudo isso, não seria de sua alçada. Essa atitude de “auto-desresponsabilização”, de se colocar sempre como alguém que está eximido de responsabilidade, mesmo diante de decisões graves em sua gestão, é efetivamente indecoroso, aqui entendido como algo vergonhoso. Mas atenta também contra a moral, na medida em que essa atitude de esquiva abriu caminho para que outros operassem, de forma espúria, sem ser molestados, em sua administração. 

Logo, não resta outra conclusão possível que não seja a nítida configuração de flagrante, irresponsável e criminosa omissão do Réu, o que depõe gravemente sobre a probidade de sua atuação como governador do estado do Rio de Janeiro.

 

6. DISPOSITIVO

Em relação à acusação de crime de responsabilidade relativo ao ato de requalificação da OSS Unir Saúde, considero que a pretensão acusatória é procedente, tendo em vista que tal ato, por parte do Réu, contribuiu diretamente para proteger interesses privados, mesquinhos e ilegítimos, em detrimento do elevado interesse público, sendo um capítulo da competição travada por grupos econômicos concorrentes, no âmbito da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, que disputavam, por meio do aliciamento criminoso de agentes públicos e do pagamento de vantagens indevidas, os contratos daquele órgão público estadual.

Em relação à acusação de crime de responsabilidade relativo à contratação da OSS IABAS para construir e gerir hospitais de campanha, considero que a pretensão acusatória é procedente, pois a atitude do Réu, ao se esquivar do exercício de sua função de dirigente executivo máximo do Estado do Rio de Janeiro, contribuiu diretamente para as maquinações delituosas de um dos grupos econômicos que disputavam, por meio do aliciamento criminoso de agentes públicos e do pagamento de vantagens indevidas, os contratos da Secretaria de Estado de Saúde.

Diante disso, CONSIDERANDO:

a) que o Réu, no que se refere a ambos os eixos da Acusação, agiu de modo oposto ao que se espera de um governante e líder, no sentido de proteger, cuidar e representar os legítimos interesses da população que governa e lidera;

b) que o Réu é particularmente conhecedor da Lei e das obrigações inerentes ao ocupante de cargo público, posto que exerceu várias funções de provimento efetivo, em diferentes órgãos públicos, notadamente o exercício da magistratura federal, por quase 18 anos;

c) que as consequências diretas e indiretas dos atos praticados pelo Réu, cuja autoria aqui reconheço, sem duvidar, portanto, de sua materialidade, têm relação com os números devastadores de mortos e infectados pela pandemia do novo coronavírus, no âmbito do estado do Rio de Janeiro;

d) que os atos do Réu, em relação aos dois eixos que estruturam a Acusação, ferem frontalmente a dignidade, a honra e o decoro do cargo público que ocupava:

 

ACOLHO INTEGRALMENTE A PRETENSÃO ACUSATÓRIA, OU SEJA, JULGO PROCEDENTE, EM RELAÇÃO AOS DOIS EIXOS DA ACUSAÇÃO, O PEDIDO PARA CONDENAR O RÉU À PERDA DO CARGO DE GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E À INABILITAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE QUALQUER FUNÇÃO PÚBLICA PELO PRAZO DE CINCO ANOS, NOS TERMOS DO ARTIGO 4º, INCISO V, DO ARTIGO 9º, ITEM 7, E DO ARTIGO 78, TODOS DA LEI FEDERAL Nº 1.079, DE 10 DE ABRIL DE 1950.

 

É como voto.

           

Rio de Janeiro, 30 de abril de 2021

 

WALDECK CARNEIRO

Relator

 

 

 


[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 2ª ed, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006.

[2] BROSSARD, Paulo. O Impeachment. 2ª Edição. São Paulo, Saraiva,1992.

[3]  DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo, Atlas, 2005.

[4] TOCQUEVILLE, Alexis de. 12ª Edição. Paris: Institut Coppet, 2012.

[5]  DE LACERDA, Paulo Maria. Princípios de Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Azevedo, 1912.

[6]  BARROSO, Luís Roberto. Impeachment – Crime de Responsabilidade – Exoneração do Cargo. Revista de Direito Administrativo, vol. 212, p. 174, 1998.

[7]  GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 2° Volume. 11ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1996.

[8]  GRECO FILHO, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades. São Paulo: Editora Saraiva, 1989.

[9]  BAUMAN, Zygmunt. Cegueira Moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de janeiro: Zahar, 2014.

[10]  OPAS/OMS Brasil. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus) - Atualizada em 17 de abril de 2020. Disponível em: Acesso em 17/04/2020.

[11]                   BRASIL CONFIRMA PRIMEIRO CASO DO NOVO CORONAVÍRUS. Governo Brasileiro, 2020. Disponível em: http://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/02/brasil-confirma-primeiro-caso-do-novo-coronavirus

[12]                   ESTADO DO RIO DE JANEIRO CONFIRMA PRIMEIRO CASO DE CORONAVÍRUS. Agência Brasil, 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/estado-do-rio-de-janeiro-confirma-primeiro-caso-de-coronavirus-0

[13]  GOVERNO DO RJ CONFIRMA A PRIMEIRA MORTE POR CORONAVÍRUS. Portal G1 Rio, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/19/rj-confirma-a-primeira-morte-por-coronavirus.ghtml

[14] Polícia Federal. PF prende empresário envolvido em desvios na área da saúde do Rio de Janeiro. 2020. Disponível em: http://www.pf.gov.br/imprensa/noticias/2020/06-noticias-de-junho-de-2020/pf-prende-empresario-envolvido-em-desvios-na-area-da-saude-do-rio-de-janeiro

[15] Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. MPRJ realiza operação para prender integrantes de organização criminosa que desviou R$ 3,9 milhões dos cofres públicos em compras superfaturadas na área de saúde. 2020. Disponível em: http://www.mprj.mp.br/noticias-todas/-/detalhe-noticia/visualizar/85217

[16] BRASIL. Diário Oficial da União. Seção 1, 1892. Página 449. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-30-8-janeiro-1892-541211-publicacaooriginal-44160-pl.html

[17] BROSSARD, Paulo. O Impeachment. 3ª Edição. São Paulo, 1992. Editora Saraiva.

[18] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

[19] AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Delta, 1980.

[20] MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

[21] GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL 2020. Disponível em: http://www.fazenda.rj.gov.br/sefaz/content/conn/UCMServer/uuid/dDocName%3aWCC42000007038

[22] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2001.

[23] MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

[24] DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. v. I, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

[25] MEIRELLES, Hely Lopes et al. Direito Administrativo Brasileiro. 44ª ed. Salvador, Juspodivm; São Paulo: Malheiros, 2020.


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